segunda-feira, 30 de dezembro de 2013

Transporte, tarifa e copa


“o fim dos órgãos de censura não significou o fim dela. O Judiciário, poder do Estado instituído para garantia dos direitos, vem sendo manejado — com fundamento no princípio da inafastabilidade da jurisdição — para o cerceamento da liberdade. Bancos já pretenderam resolver os conflitos coletivos de trabalho propondo ações possessórias para impedir manifestações nas calçadas ou ruas nas quais tivessem agência, como se fossem os possuidores de tais espaços. Seguiram-se os pedidos de censura a obras artísticas com fundamentos genéricos que não se limitaram à proteção da imagem ou intimidade”.

Diz a Constituição que a Lei não excluirá da apreciação do Poder Judiciário nenhuma lesão ou ameaça a direito. Em exceção a este princípio os constituintes, submetidos ao lobby dos cartolas, inseriram na Constituição que “o Poder Judiciário só admitirá ações relativas à disciplina e às competições desportivas após esgotarem-se as instâncias da Justiça Desportiva”. Mesmo esgotados os meios de arbitragem, a Fifa, que é a ONG dos cartolas internacionais sediada na Suíça, não admite a jurisdição dos Estados Nacionais e ameaça com desfiliação as confederações que acatarem ou não punirem as federações ou clubes que a ela se submeterem.

A Constituição, elaborada em momento de redemocratização do país, pretendeu extinguir a censura prévia e consagrou a liberdade da manifestação do pensamento. Os censores, funcionários da Polícia Federal, foram aposentados ou reaproveitados em outras funções. Os órgãos de censura foram extintos. Mas o fim dos órgãos de censura não significou o fim dela. O Judiciário, poder do Estado instituído para garantia dos direitos, vem sendo manejado — com fundamento no princípio da inafastabilidade da jurisdição — para o cerceamento da liberdade. Bancos já pretenderam resolver os conflitos coletivos de trabalho propondo ações possessórias para impedir manifestações nas calçadas ou ruas nas quais tivessem agência, como se fossem os possuidores de tais espaços. Seguiram-se os pedidos de censura a obras artísticas com fundamentos genéricos que não se limitaram à proteção da imagem ou intimidade.

O Judiciário fluminense já tentou, por meio de liminares, impedir que os passageiros desrespeitados na travessia Rio-Niterói se manifestassem contra abusos lhes acometidos ou reclamassem do aumento da tarifa. O reajuste em R$ 0,20 nas passagens dos ônibus neste ano foi o estopim para manifestações contra outros abusos. Diante da reação popular, o preço da passagem não subiu. O Estado, com seu aparato repressivo, perseguiu, prendeu e condenou até moradores de rua. Um manifestante foi mantido preso por 65 dias por ‘necessidade da ordem pública’ e foi solto sob o fundamento de que não havendo mais manifestações sua liberdade não causaria danos.

Anuncia-se novo aumento da passagem de ônibus para o próximo ano. Não haveria reclamação se houvesse planilhas dos gastos das empresas que mostrassem seus custos operacionais e margem de lucro. Tal como a ação da cartolagem, os preços das tarifas de transporte são uma incógnita.
 
 
 

Publicado originariamente no jornal O DIA, em 29/12/2013, pag. 12. Link: http://odia.ig.com.br/noticia/opiniao/2013-12-28/joao-batista-damasceno-transporte-tarifa-e-copa.html

A vida sempre renasce



"Em tempo no qual os cristãos promovem a vivência da fraternidade e da paz, Dom Orani recebeu uma cópia da obra ‘Por uma cultura de paz’, do cartunista Carlos Latuff”.

Magistrados se reuniram na semana passada com Dom Orani João Tempesta, arcebispo do Rio de Janeiro, para a celebração do Advento. O Advento é o primeiro tempo do ano litúrgico e corresponde aos dias que antecedem o Natal. Para os cristãos, é um tempo de preparação, de alegria e de expectativa, onde os fiéis, esperando a data da comemoração do nascimento de seu Deus, vivem o arrependimento e promovem a fraternidade e a paz.


Tal como nos eventos relatados na literatura cristã, onde Cristo se reunia, dividia o pão e servia vinho, não faltou boa comida no encontro. O jantar no Palácio Episcopal dignificou os convidados. Mas a iguaria foi a recepção e o diálogo com o anfitrião. Em linguagem coloquial, entre sorrisos discretos, Dom Orani falou aos comensais em seu tom pastoral e evangelizador.

Em tempo no qual os cristãos promovem a vivência da fraternidade e da paz, Dom Orani recebeu uma cópia da obra ‘Por uma cultura de paz’, do cartunista Carlos Latuff. A obra, exposta no Fórum do Rio de Janeiro, causou polêmica, em razão da incompreensão ou atingimento dos interesses daqueles que promovem e — possivelmente — se beneficiam da ‘guerra ao crime’.


Acompanhando a cópia da obra, recebeu também o artigo ‘Pela cultura da paz’, publicado no DIA em 28 de agosto, e autografou o seu artigo ‘Supliquemos pela paz’, que fizera publicar em outro órgão da imprensa carioca em 6 de setembro.

A polêmica criada em razão da exposição da obra de Carlos Latuff no Fórum serviu para que um limão fosse transformado em limonada. A controvérsia propiciou um leilão e, com o produto, a aquisição de uma casa para a família do pedreiro Amarildo, que, como tantas outras famílias vitimadas pela cultura da violência, vivenciará no Dia de Natal a ausência de um ente querido, quando o sentimento haveria de ser a fraternidade e celebração de nascimento.

Amarildo é o desaparecimento que tem nome. Mas, além das famílias dos desaparecidos, famílias igualmente vivenciarão a ausência de entes queridos, mortos pela política de segurança militarizada, dentre os quais os filhos da juíza Patrícia Acioli.

A censura à obra de arte não a aniquilou. Ao contrário, a promoveu. Arrematada por uma desembargadora paulista, hoje se encontra exposta no Tribunal de Justiça de São Paulo. Os que promovem a guerra não são capazes de matar a esperança e eliminar a possibilidade de vida; e vida com abundância. Independentemente de nossas concepções filosóficas, podemos afirmar que a vida sempre renasce.

 

Publicado originariamente no jornal O DIA, em 22/12/2013, pag. 16. Link: http://odia.ig.com.br/noticia/opiniao/2013-12-21/joao-batista-damasceno-a-vida-sempre-renasce.html

 

quarta-feira, 11 de dezembro de 2013

Arquitetura, arte e poder


“A profusão de prédios do Tribunal de Justiça do Rio — um deles de costas para a rodoviária onde está o povo —, a censura à obra ‘por uma cultura de paz’, do cartunista Carlos Latuff, e a escolha do pedreiro Amarildo para patrono da turma dos formandos em Arquitetura e Urbanismo da Universidade Federal Fluminense demonstram que arte, arquitetura, Justiça e poder podem estar relacionados e expressar concepções ideológicas”.

Na direção da Escola de Artes Aplicadas de Weimar desde 1919, Walter Gropius a mudou para Dessau e fundou a Bauhaus, escola que concebeu obras funcionais e não meramente estéticas ou decorativas. Buscou integrar a arte e a técnica; o funcional e o estético. No mesmo período o arquiteto Alfred Agache foi contratado para remodelar a cidade do Rio e a concebeu neoclássica.

Trata-se do estilo do prédio da Assembleia Legislativa do Rio, inaugurado em 1926, e no qual por toda parte se vê o ‘fascio’, feixe de varas que expressa a unidade totalitária do fascismo italiano, servindo de cabo do martelo romano, símbolo do poder. Neoclássico foi o estilo adotado pelos Estados totalitários de direita. É, também, o estilo do prédio do Ministério da Fazenda no Rio. Agache foi o arquiteto da ditadura do Estado Novo de 1937 a 1945.

Na Alemanha, em 1933, os nazistas tomaram o poder e perseguiram a Bauhaus, que consideravam ‘arte comunista e degenerada’. Gropius se exilou nos EUA. Em 1931 Lúcio Costa se demitiu da direção da Escola de Belas Artes, por ter aderido ao modernismo. Mas Vargas também precisava de um estilo diferente que o do governo que derrubara. Em 1936 iniciou a construção do prédio do MEC, no Rio, marco da arquitetura moderna brasileira. Projetado pelos jovens arquitetos Lúcio Costa, Affonso Reidy, Oscar Niemeyer e outros, sob a consultoria do francês Le Corbusier, o prédio é realmente do público. Não tem escadarias, muros, grades, sentinelas ou guaritas. O cidadão que passa pela rua entra nele, sem perceber qualquer limite. Tudo é público: a rua e o prédio.

A profusão de prédios do Tribunal de Justiça do Rio — um deles de costas para a rodoviária onde está o povo —, a censura à obra ‘por uma cultura de paz’, do cartunista Carlos Latuff, e a escolha do pedreiro Amarildo para patrono da turma dos formandos em Arquitetura e Urbanismo da Universidade Federal Fluminense demonstram que arte, arquitetura, Justiça e poder podem estar relacionados e expressar concepções ideológicas. 

 
Publicado originariamente no jornal O DIA, em 11/12/23013, pag. 20. Link: http://odia.ig.com.br/noticia/opiniao/2013-12-11/joao-batista-damasceno-arquitetura-arte-e-poder.html

quarta-feira, 4 de dezembro de 2013

Helicópteros: pó-pó-pó e bum!


“Fotos dos proprietários da aeronave com governadores da oposição circulam pelas mídias sociais. Mas, a mídia tradicional – responsavelmente – não abordou a relação entre eles. Este é um comportamento desejável, tanto da polícia quanto da mídia. Não há prova, até agora, de que os proprietários do helicóptero sejam os donos da droga e, portanto, há de viger o princípio da inocência. Igualmente, as fotos com os governadores não expressam relação com o ilícito. O mesmo princípio deve valer para jovens negros e pobres das favelas ou da periferia e para políticos de outros partidos”.
 
Helicópteros não têm causado maiores baixas no campo político graças à condescendência de setores da mídia. Em 2011, a queda de um deles na Bahia expôs as relações entre coisa pública e vida privada e entre políticos e empreiteiros. Os danos não foram maiores porque a ‘CPI do Cachoeira’ foi por água abaixo. Neste ano, no Rio, o uso de helicóptero oficial para transporte de um cachorro voltou a ser tema do noticiário por alguns dias. A recente apreensão de 445 quilos de cocaína a bordo de um helicóptero pertencente a um deputado mineiro, filho de um senador do mesmo estado, volta a expor a seletividade das coberturas jornalísticas. O helicóptero do deputado, pilotado por seu assessor, abastecido com verba de gabinete, saiu de São Paulo, pousou na fazenda da família do parlamentar em Minas Gerais e rumou para o Espírito Santo, onde a droga foi apreendida. O piloto responsabiliza o copiloto e o delegado já adianta: “Até agora não há prova de envolvimento da família do deputado ou da empresa dele com o tráfico de cocaína”.
Fotos dos proprietários da aeronave com governadores da oposição circulam pelas mídias sociais. Mas, a mídia tradicional – responsavelmente – não abordou a relação entre eles. Este é um comportamento desejável, tanto da polícia quanto da mídia. Não há prova, até agora, de que os proprietários do helicóptero sejam os donos da droga e, portanto, há de viger o princípio da inocência. Igualmente, as fotos com os governadores não expressam relação com o ilícito. O mesmo princípio deve valer para jovens negros e pobres das favelas ou da periferia e para políticos de outros partidos. Na década de 90, foto de Leonel Brizola em campanha eleitoral numa favela, foi amplamente divulgada, pois se dizia que um eleitor que o cumprimentara publicamente – no meio de dezenas de outros — era um traficante.
Julgamentos justos somente se fazem se partirem dos princípios da inocência ou da dúvida ante a acusação.
 

Artigo originariamente publicado no jornal O DIA, de 04/12/2013, pag. 22. Disponível no link: http://odia.ig.com.br/noticia/opiniao/2013-12-04/joao-batista-damasceno-helicopteros-po-po-po-e-bum.html

segunda-feira, 2 de dezembro de 2013

Ética e exercicio das liberdades: O papel de cada um não há de ser de papel


“A ética republicana impõe a separação entre o público e o privado. Mas, também o reconhecimento da supremacia da sociedade sobre o Estado. A ética republicana impõe a democracia que se caracteriza pelo poder do povo. Não só através dos seus representantes, mas também diretamente. Ocupando a cidade é o que dá a exata dimensão da cidadania. A criminalização dos manifestantes e dos movimentos sociais é uma expressão da violência ilegítima do Estado; da truculência contra a democracia. É uma violação da ética que há de orientar a relações públicas, tendo-se o Estado como ente instituído e a sociedade como instituidora e titular de todo o poder”.
Eu gostaria de abordar o conceito de ética não a partir do parâmetro grego que dá fundamento à cultura ocidental, mas a partir da cultura oriental, mais especificamente da cultura hindu.
No Bagavá Ghita, que é parte do Mahabarata, vamos encontrar conto épico no qual Árjuna solicita a Krishna que o eleve aos céus a fim de que possa conhecer aqueles com quem vai combater. Ciente de que seus tios, avós, professores, irmãos, netos e amigos estavam enfileirados no exército do lado oposto,  Árjuna desistiu de lutar. Mas, Árjuna foi exortado de que sendo um guerreiro seu dever era lutar. A realização de sua missão não se realizaria sem a luta que deveria travar. E mais, se os seus parentes, amigos e professores estavam do outro lado, isto se devia aos papéis a eles incumbido ou por eles escolhido e que portanto deveria ser por eles também desempenhados.
Este mito nos remete à eticidade a nós imposta diante dos papéis que nos são incumbidos. Viver eticamente é desempenhar o papel que a cada um de nós foi acometido ou por nós escolhido.
Ética é frequentemente tratada como sinônimo de costume. Daí se dizer que é a doutrina dos costumes. Mas na concepção aristotélica, ética é adjetivo e expressa uma virtude. A virtude ética seria a que se desenvolve na prática e caminha para o atingimento de um fim e serve para a realização da justiça, da amizade, da fraternidade e de outros valores indispensáveis à coexistência dos indivíduos em consideração uns com os outros.
Assim, a eticidade não se confunde com o moralismo, que se traduz em exigência de comportamentos alheios, nem sempre seguidos por aqueles que formulam as exigências. Em debate público em tempos pretéritos com um Senador da República, que exercia grande influência na Bahia e nas instituições brasileiras, um ministro do STF disse que “o moralismo é a ética de quem não tem ética”.
Não pretendo aqui discorrer sobre os significados de ética. Nem tampouco da história do conceito, porque demandaria uma análise da própria história da filosofia, tomando a história do ocidente como marco. Nem vou situá-la no campo dos sistemas de idéias ou das concepções que a classifica. Tampouco, neste pouco tempo, pretendo discorrer sobre imperativos e juízos, sejam de realidade ou de valor. Mas, é preciso reconhecer que há uma linguagem própria da ética e que tem natureza prescritiva. Assim, não é possível falar-se de ética sem conceber que ela se expressa por meio de juízos de valor e havemos de tomar em consideração os estudos sobre a sua linguagem. A ética há de ser propriamente considerada e não confundida com o moralismo ‘neo-udenista’ que impregna os discursos de um certo tipo de marketing pessoal.
O primeiro pressuposto da ação ética é de que ninguém pode ser ético consigo mesmo, pois a ética pressupõe a condução diante de outro. Igualmente ética não se pode confundir com moralismo, pois este não pressupõe a condução do sujeito ético, mas uma exigência em face de outrem, de quem se cobra um comportamento desejado. Ser ético é conduzir-se em respeito ao outro, às suas qualidades, aos seus direitos e, sobretudo, à sua liberdade.
A eticidade pode ser exercida perante outros indivíduos, perante uma coletividade, perante toda a sociedade ou todos os demais seres que ocupam o planeta ou que poderão vir a ocupa-lo. Neste sentido, o discurso ambientalista é ético, pois pressupõe o uso adequado dos recursos e da qualidade de vida na terra, respeitando os demais seres e visando propiciar condições de vida aos indivíduos do futuro. Igualmente o discurso republicano, que obsta a apropriação privada do que é comum ou sugere a construção de espaços de compartilhamento. A defesa da liberdade é ética, pois pressupõe o reconhecimento do direito de outro. É ética a conduta que reconheça ao outro o poder de exercício legítimo de suas potencialidades.
E é sobre isto que eu devo tratar agora. Sobre a eticidade, sobre a liberdade e sobre as liberdades.
Liberdade, do ponto de vista individual, é o direito de buscar e fazer tudo que a outrem não prejudique. Mas, liberdades, tomadas no plural são os direitos civis e as liberdades que protegem o indivíduo do poder arbitrário do Estado, evitando o abuso de poder e a violação à vida privada dos cidadãos. A abrangência de tal conceito não pode sofrer variações em decorrência das circunstâncias.  Se as liberdades são ‘direito’, podem ser exigidas em face de quem a elas se oponha e às instituições cabe assegurá-las. Mas, as liberdades também podem ser violadas pelo capital e pelas corporações que o representa e neste sentido a eticidade republicana impõe que o Estado esteja ao lado da sociedade, ainda que difícil concebê-lo para outro fim que não a defesa dos interesses que o instituiu.
A recente discussão sobre as biografias de pessoas vivas é emblemática. As duas maiores editoras do país, majoritárias no campo das comunicações sociais, pela titularização de jornais, rádios, TVs e outros negócios na mesma base territorial, falam em liberdade, mas o que pretendem é a apropriação da imagem e história de vida de pessoas notáveis, subtraindo do biografado o direito de uso da obra sobre ele. Trata-se de caso exemplar de transformação de pessoa viva em objeto ou mercadoria, sem o seu consentimento, com exclusão da possibilidade de uso da obra pelo próprio biografado a pretexto de propriedade imaterial do autor.
Dentre as liberdades podemos citar o direito à liberdade ir e vir, o direito à segurança, à liberdade de consciência, à liberdade de manifestação do pensamento, à liberdade de crença e religião, a liberdade de associação e reunião, o direito à privacidade, o direito à racionalidade e previsibilidade do pronunciamento de acordo com o padrão normativo comum se diante de um tribunal, o direito a um julgamento justo e ao cumprimento de pena – se condenado -, com reconhecimento das qualidades inerentes à condição humana, bem como o direito de ter o que for construído pelo trabalho e defender a si mesmo.
Este é um momento difícil para falar de liberdade ou de liberdades. No Brasil – por toda parte – a letra da Constituição que diz que ninguém será preso, salvo em flagrante delito ou ordem escrita de autoridade judicial competente é letra morta. As ‘prisões para averiguação’ são uma realidade em todo o país, seja de trabalhadores, jovens pobres e negros, seja de manifestantes. A letra da Constituição somente tem vigência e eficácia em setores nobres da sociedade. Trata-se de prática legitimada pelas instituições, em nome de suposta necessidade da ordem pública.
Por imperativo ético, os órgãos do Estado hão de se mobilizar para garantir o direito à liberdade, primeiro dentre aqueles para a mobilização por uma sociedade justa e fraterna e na qual possam os indivíduos desenvolver suas potencialidades. Mas, ainda que ninguém seja contra a liberdade, não faltam aqueles que são contra as liberdades alheias. Igualmente, ninguém é contra o direito de opinião, ainda que não faltem aqueles que não reconhecem como legítimos os posicionamentos contrários aos seus.
Não é apenas o Estado – abstratamente considerado - que é inimigo da liberdade. Piores são os interesses defendidos e os estamentos burocráticos, encastelados e afastados da realidade, sequiosos na defesa de seus próprios interesses, nem sempre legítimos. Torna-se gravíssimo para as liberdades quando os interesses defendidos são daqueles que – incrustrados nos aparelhos do Estado - se armam contra a sociedade em benefício próprio, expressão do patrimonialismo.
A defesa, pelos agentes do Estado, dos interesses alheios - seja do capital, sistemicamente considerado, ou das grandes corporações que o representa - expressa opção no manejo dos recursos públicos. Mas, a defesa, por agentes do Estado, de interesses próprios - notadamente por meio das armas colocadas pelo Estado à sua disposição - torna as condutas mais cordiais, em sentido inverso do empregado por Sérgio Buarque de Hollanda e para a qual chamou atenção Cassiano Ricardo. O assassinato da Juiza Patrícia Acioli no Estado do Rio de Janeiro, com 21 tiros e sob xingamentos, nos dá dimensão do que as forças estatais são capazes, quando contrariados os seus interesses. Nos dá dimensão do que o Estado é capaz se não estiver mobilizado para reconhecer sua atuação como autêntico serviço público e nos limites da legalidade.
Mas, não só indivíduos armados pelo Estado são capazes da truculência contra as liberdades. Todo poder ilegítimo somente se afirma pela violência. O poder legítimo se exerce por sinais. As pompas e sinais exteriores de autoridade são apenas demonstração da fraqueza de quem ordena. Foi o enfraquecimento da realeza, ante a ascensão da burguesia, que produziu palácios, ritos solenes e tronos banhados a ouro. O poder legítimo dispensa as exterioridades e a violência para demonstrar sua existência, presença e efetividade.
Toda autoridade repousa em última instância na força. Mas, o exercício da força é demonstração de que a autoridade falhou. Pela violência a autoridade se impõe, quando voluntariamente não é acatada. A autoridade legítima é voluntariamente acolhida. A eticidade das relações Estado-cidadão dispensa a força.
Mas, a criminalização dos movimentos sociais no presente momento é cabal demonstração de que as autoridades pretendem se reforçar pelo uso da força, por não disporem dos meios de convencimento dos cidadãos. Organizam-se pelos entes federados diversos órgãos armados e militarizados, sem previsão legal, numa grave violação da eticidade do Estado de Direito. As Guardas Municipais militarizadas são exemplos. Em regra, são empresas municipais de vigilância a quem se acomete poder de polícia. A Força Nacional é outra. Sem previsão constitucional, afirmou-se com existência própria, tal como se fosse uma milícia do poder central.
É um momento de ascensão do Estado Policial em sufocamento das liberdades e violação da eticidade do Estado Democrático de Direito.
Em seu último pronunciamento público o reitor da Universidade de Salamanca, Miguel de Unamuno, dirigiu-se aos ‘camisas pretas’ do franquismo e lhes disse que poderiam vencer, em razão da força, mas que a ninguém convenceriam por lhes faltar razão. Para convencer é preciso ter razão e direito.
Na tradição judaico-cristã temos o exemplo de Moisés, que guiou o povo hebreu pelo deserto durante 40 anos em busca da ‘terra prometida’. Guiar o povo em tempo de abundância até administradores ineptos são capazes. Mas, pelo deserto, e em tempos de escassez, é preciso inspirar crença na legitimidade. Ainda que Moisés fosse um profeta armado não foi pela força que conduziu o povo pelo deserto. Afinal, os fortes não podem com os fracos quando estes se associam. E o que gera as manifestações e as rebeliões não são as liberdades, mas a opressão.
Seria risível, não estivessem as liberdades sendo sacrificadas, que bombinha do tipo ‘cabeça de nego’, com as quais crianças brincam nas festas juninas, miniatura de máscara veneziana de porcelana e livro de autores de esquerda, encontrados em casas de manifestantes, sejam considerados ‘corpos de delito’ a justificar a prisão de estudantes.
Mas, em momento de supressão das liberdades havemos de fazer distinções e digno de registro é a atuação da Ministra Maria do Rosário, por se colocar ao lado da sociedade ou tentar fazer o que lhe é possível para assegurar os direitos. Outras autoridades haveriam de ser citadas, mas para evitar injustiça fiquemos apenas com o exemplo da ministra, na pessoa de quem reportamos a todos os que têm idêntico comportamento cerrando fileiras ao lado dos defensores dos direitos da pessoa humana.
Ao contrário do que recomenda a ética republicana e do Estado de Direito e Democrático tenho tem-se promovido o encarceramento em massa no Brasil. Na falta de outro tipo no qual se enquadrar, tem-se optado – no Estado do Rio de Janeiro, por exemplo - pelo indiciamento por composição de organização criminosa. Mas, a manifestação coletiva não expressa associação. Menos ainda que seja associação para o cometimento de crimes. O direito de manifestação do pensamento é constitucional e sua violação implica violação à ética republicana, à eticidade do Estado de Direito e às liberdades. Mas, o que se busca apurar não são os crimes, pois não se tem notícia de apuração dos abusos policiais contra a sociedade. O que se busca é intimidá-la. Os dirigentes institucionais, assustados com a reação da sociedade, imputam-lhe crimes e a qualifica de vândala. É o próprio poder contestado que atua em ilegítima defesa. A defesa do Estado é ilegítima, porque não há ameaça de mal quando a sociedade assume o cuidado com o que é seu. Os crimes imputados aos manifestantes não são ocorrências concretas no mundo natural, mas a descrição dos tipos abstratos constantes da lei como hipótese.
Vou retornar ao começo desta exposição para recolocar o discurso no âmbito da eticidade da conduta de cada um, de acordo com o que de cada um se espera.
Cada um de nós que ocupa um cargo, emprego ou função pública tem um múnus; um dever a cumprir. Se a uns cabe a honra de lutar por Tróia a outros cabe a glória de lutar por Esparta. O papel de Árjuna era lutar, pouco importando quem estivesse do lado oposto. A cada um cabe um papel, nem sempre conciliável com aquele que expressa deveres ou interesses diversos. A divisão de poderes e de funções impõe que cada atribuição contraposta, própria do sistema de freios e contrapesos, se exerça, sem acomodação à outra, mas igualmente sem atritos que expressem invasão da esfera de competência alheia.
Chefes institucionais de poderes e órgãos diversos, por conivência ou incompreensão dos seus papeis institucionais, aliam-se em prol do que chamaram de ‘interesse geral’, desconsiderando o conflito de interesses no seio da sociedade e que foi evidenciado pelas manifestações populares. E desconsideram também a ordem jurídica e o princípio da separação dos poderes.
O poder que integro, o Poder Judiciário andou ao longo do tempo corroborando as políticas violadoras de direitos fundamentais e sociais. Ainda hoje o faz. Em outros lugares, com arroubos de distanciamento para denotar contrariedade e conquistar descontentes, coloca-se na oposição para fins midiáticos, em prol de interesses não explicitados.
A sociedade espera dos poderes o respeito absoluto e incondicional aos valores jurídicos próprios do Estado Democrático de Direito; a mobilização e promoção da conscientização crescente das funções públicas como proteção efetiva dos direitos da pessoa humana, individual e coletivamente considerada, e a consequente realização substancial, não apenas formal, dos valores, direitos e liberdades do Estado Democrático de Direito; a defesa da independência dos poderes não só perante os demais poderes como também perante grupos que tradicionalmente usurparam seus comandos no interesse dos seus clãs; a democratização da estrutura do Estado; à atuação dos órgãos públicos como autêntico serviço público que, respondendo ao princípio da transparência, permita ao cidadão o controle de seu funcionamento; a promoção e a defesa dos princípios da democracia pluralista, bem como a difusão da cultura jurídica democrática.
A ética republicana impõe a separação entre o público e o privado. Mas, também o reconhecimento da supremacia da sociedade sobre o Estado. A ética republicana impõe a democracia que se caracteriza pelo poder do povo. Não só através dos seus representantes, mas também diretamente. Ocupando a cidade é o que dá a exata dimensão da cidadania. A criminalização dos manifestantes e dos movimentos sociais é uma expressão da violência ilegítima do Estado; da truculência contra a democracia. É uma violação da ética que há de orientar a relações públicas, tendo-se o Estado como ente instituído e a sociedade como instituidora e titular de todo o poder.
Ainda que cada um - no respectivo campo - desempenhe o seu papel, da conjugação das atuações resulta ação coletiva.  Mobilizar é conjugar vontades para atuar na busca de um propósito comum, sob uma interpretação e um sentido também compartilhados.
São frequentes as mobilizações para a guerra, mas havemos de mobilizar para a paz; são frequentes as mobilizações para a ‘demonização’ de pessoas ou grupos sociais, notadamente daqueles que se situam no campo dos excluídos, e neste sentido a mídia tem prestado grande desserviços aos direitos humanos, mas havemos de mobilizar para a garantia dos direitos; é possível mobilizar a sociedade e os recursos públicos para um campeonato de futebol, mas havemos de mobilizar para efetivar os objetivos fundamentais da República, contidos nos art. 3º da Constituição, quais sejam, construir uma sociedade livre, justa e solidária; garantir o desenvolvimento nacional; erradicar a pobreza e a marginalização e reduzir as desigualdades sociais e regionais; promover o bem de todos, sem preconceitos de origem, raça, sexo, cor, idade e quaisquer outras formas de discriminação.
Se conjugarmos nossos esforços em prol das liberdades e garantias dos direitos estaremos mobilizados socialmente e vivendo eticamente.






João Batista Damasceno[1],
doutor em Ciência Política (UFF),
juiz de direito titular da 1ª Vara de Órfão e Sucessões do
Rio de Janeiro ((1ª VOS) e
membro da Associação Juízes para a Democracia/AJD.




[1] Exposição apresentada no painel ÉTICA E EXERCÍCIO DAS LIBERDADES no ‘XIV seminário internacional ética na gestão: ética, democracia, justiça e mobilização social’, organizado pelo Conselho de Ética da Presidência da República, Brasília, DF, nov. 2013.

Disponível no site: http://etica.planalto.gov.br/noticias/ultimas_noticias/2013/12/etica-e-exercicio-das-liberdades-dr.-joao-batista-damasceno.pdf
 
 

 

quarta-feira, 27 de novembro de 2013

Agora, o tom vitimizado



“Com a redemocratização do país os militares voltaram aos quartéis, deixando suas práticas para as instituições estaduais”.



Com a redemocratização do país os militares voltaram aos quartéis, deixando suas práticas para as instituições estaduais. A truculência do Estado atuou sobre os corpos, produzindo tortura, morte e desaparecimentos, e sobre as mentes, produzindo o espanto e o temor. As políticas públicas refletiram tais concepções repressivas. Conceberam-se programas de tolerâncias zero, choques de ordem, secretarias de ordem, UPPs militarizadas e até empresas de vigilância em forma de guardas municipais militarizadas. Não houve quem não temesse abusos diante de uma blitz, abreviatura da palavra alemã blitzkrieg e que durante o nazismo expressava abordagem surpresa ou ‘guerra relâmpago’. Autoridades de segurança, do alto de seus fuzis, determinavam comportamentos à sociedade, por vezes incensados por setores da mídia. 

A sociedade viu que a guerra era do Estado contra ela e reagiu. As manifestações em todo o país deram o tom do descontentamento. Em resposta, aprofundou-se a repressão. Demais instituições fizeram coro. Estudantes, trabalhadores e moradores de rua foram ‘conduzidos’ para delegacias como integrantes de organizações criminosas. Pessoas que nunca antes haviam se visto foram consideradas associadas para a prática de crimes. Delegados foram admoestados por seus superiores para lavrarem autos de prisão em flagrante sem ocorrências concretas que os justificassem. Autoridade policial é delegado de polícia. Chefes de polícia não poderiam legalmente intervir em suas atribuições. 

Mas, a arrogância do Estado Policial cedeu. Autoridades de segurança estão falando baixinho e em tom lamentoso por uma ou outra ocorrência anômala apontada pela mídia, dentre milhares que são apenas números. As políticas de segurança não mudaram. Mas, já se muda o jeito com o qual autoridades — em tom vitimizado — lamentam os fatos por elas mesmas determinados.


 
Publicado originariamente no jornal O DIA, em 27/11/2013, pag. 20. Disponível no link: http://odia.ig.com.br/noticia/opiniao/2013-11-27/joao-batista-damasceno-agora-o-tom-vitimizado.html

 

quarta-feira, 20 de novembro de 2013

Republicanos ressentidos

“O professor Carlos Henrique Aguiar Serra, da Universidade Federal Fluminense, proferiu palestra na Escola da Magistratura onde abordou a cultura punitiva no Brasil. Diante da truculência policial contra manifestantes e professores do Rio de Janeiro tratou das políticas de segurança e da preparação dos agentes do Estado para tais práticas, mas não deixou de analisar o componente sádico da conduta de alguns deles”.

O professor Carlos Henrique Aguiar Serra, da Universidade Federal Fluminense, proferiu palestra na Escola da Magistratura onde abordou a cultura punitiva no Brasil. Diante da truculência policial contra manifestantes e professores do Rio de Janeiro tratou das políticas de segurança e da preparação dos agentes do Estado para tais práticas, mas não deixou de analisar o componente sádico da conduta de alguns deles.

A recente morte cerebral e as queimaduras em dezenas de recrutas da Polícia Militar podem ser indicativos da preparação para a desumanização e satisfação com a dor e sofrimento alheio, por instrutores que haveriam de se preparar para a uma política humanizada de segurança. Tal sadismo, fundado numa concepção punitiva, igualmente se verifica no prazer de telespectadores diante de julgamentos midiáticos, no regozijo com as condenações criminais e até mesmo com as execuções daqueles que são tratados como indignos de viver. Daí é que as políticas públicas de segurança violadoras dos direitos das pessoas encontram legitimidade nos piores sentimentos de específicos grupos sociais. 

As comemorações pelas prisões dos réus condenados à prisão na ação penal 470 do STF, processo do mensalão, no Dia da República, nos dão a dimensão do regozijo com o mal alheio. A ética da responsabilidade há de compensar os indivíduos por suas condutas. Ainda que o sistema penal atue como vingança estatal e não tenha qualquer proveito para nenhum dos membros da sociedade, continuamos a adotá-lo. Mas, nenhuma condenação há de ser motivo para comemoração.

A proclamação da República em 15 de novembro de 1889, após a abolição da escravatura em 13 de maio de 1888, contou com a adesão de última hora dos senhores de escravos, que se julgaram “expropriados no seu direito de propriedade”. Eram os “republicanos ressentidos” ou “republicanos de 13 de maio”, coronéis mandões que suprimiram os direitos na 1ª República. O ressentimento por coisas passadas é mau conselheiro dos que querem contribuir na construção do futuro.

 




Publicado originariamente no jornal O DIA, em 20/11/2013, pag. 22. Disponível no link: http://odia.ig.com.br/noticia/opiniao/2013-11-20/joao-batista-damasceno-republicanos-ressentidos.html



quarta-feira, 13 de novembro de 2013

Construção do medo


“A construção do medo reforça políticas de segurança desumanizadas, justifica gastos, legitima o aparato repressivo e a supressão dos direitos”.

A ocorrência no Fórum de Bangu que vitimou um policial e uma criança não se traduz em cena comum porque fantasiosa a insegurança com que nos aterrorizam autoridades e parcela da mídia. A construção do medo reforça políticas de segurança desumanizadas, justifica gastos, legitima o aparato repressivo e a supressão dos direitos. Estuda-se a instituição de videoconferência nos julgamentos, que haveria de ser uma excepcionalidade, embora – em tais casos - preferível fosse a ida do juiz ao preso.

Ônibus da Secretaria de Administração Penitenciária (SEAP) rumam para os fóruns todos os dias no mesmo horário, com dezenas de presos e agentes, em total insegurança. Com mais veículos poderiam distribuir os presos, retirando de quem tivesse a intenção do resgate a certeza de que todos estão no mesmo lugar. Os veículos da SEAP, sem condição de submissão a vistoria no Detran, expunham a vida de agentes, presos e população. O MP propôs ação civil pública para que fossem substituídos e o juízo fazendário deferiu liminar. Mas, a eficácia da liminar foi suspensa.

O Estado busca controlar a sociedade por meio de leis e truculência. Mas, nem sempre se submete à legalidade. Em plantão judicial estarreci-me com as práticas estatais alheias ao Estado de Direito. Na apuração de atos infracionais, adolescentes apreendidos em flagrante devem ser encaminhados à autoridade policial, que prontamente há de entregá-los ao responsável, se comparecer, para apresentação ao MP no mesmo dia ou dia útil seguinte. Há plantão judicial, com presença de membro do MP, à noite e nos fins de semana.

No Rio de Janeiro tem-se feito o encaminhamento ao Degase (sucessor da Funabem) e somente depois o encaminhamento ao MP. A exceção legal é a internação provisória para a garantia da segurança pessoal do adolescente. Internação definitiva só em caso de grave ameaça ou violência à pessoa, reiteração de condutas e descumprimento de medidas socioeducativas. A internação de adolescentes no Degase antes da apresentação ao MP é uma ilegalidade.

Publicado originariamente no jornal O DIA, em 13/11/2013, pag. 20. Link: http://odia.ig.com.br/noticia/opiniao/2013-11-13/joao-batista-damasceno-construcao-do-medo.html
 
 

terça-feira, 12 de novembro de 2013

PEC DA BENGALA


“Nas democracias o poder há de ser dividido e controlado. Para o controle não bastam os órgãos formais. Também é eficiente a limitação temporal nos cargos de mando. Ao invés da PEC que eterniza determinados oligarcas nas cúpulas institucionais seria mais proveitoso à cidadania uma que limitasse temporalmente a permanência nos tribunais, facultada a aposentadoria pelo tempo proporcional ou o retorno à classe inicial da carreira”.


Projeto de Emenda Constitucional pretende fixar o limite da permanência no serviço publico em 75 anos. É a PEC da bengala. Congressistas vivem sob pressão de cúpulas institucionais para a aprovação. Enquanto trabalhadores reclamam do aumento do tempo para a aposentadoria, causa estranheza o ‘desejo de servir’ por mais 5 anos após os 70. Um parlamentar relatou-me a abordagem e se disse assediado; outro, disse-me, ameaçado. Caravanas visitam o Congresso Nacional a fim de promover o ‘convencimento’. Não se tem tido o pudor de evitar o assédio a parlamentares sujeitos aos seus julgamentos. Parlamentares vivem o temor de decisões que possam causar inelegibilidades em ano pré-eleitoral. Só os que se limitaram ao gozo pela posse do poder e vivem para os cargos que ocupam, mas que julgam seus, pressionam parlamentares. Com outras razões existenciais não o fariam.

O paradigma utilizado para a defesa da PEC da bengala são os EUA onde os juízes permanecem em atividade enquanto bem servir, independentemente de idade. Mas, a cultura política e o sistema judicial estadunidense são outros. Nos EUA há juízes eleitos e nomeados pelo partido vencedor das eleições. A politização do processo de nomeação nos EUA não propicia grande interferência nos julgamentos, ante o sistema do precedente, pelo qual um julgamento vincula os pronunciamentos posteriores. O pronunciamento de um juiz sobre um tema o vincula e ao órgão que titulariza; o julgamento de tribunal o vincula, assim como a todos os juízos a ele ligados. No Brasil cada órgão judicial tem seu entendimento e o julgamento de um caso não é paradigma para julgamento posterior; a mesma matéria pode receber interpretações diferentes, para destinatários distintos, ainda que emanada do mesmo órgão judicante.

A atividade da função pública enquanto se vivesse era um pressuposto das monarquias hereditárias, assim como a concepção de que o rei não errava. Deste pressuposto decorria a presunção de veracidade dos atos daqueles que atuavam em seu nome. Mas, o Estado democrático e republicano tem outros fundamentos. Nas democracias o poder há de ser dividido e controlado. Para o controle não bastam os órgãos formais. Também é eficiente a limitação temporal nos cargos de mando. Ao invés da PEC que eterniza determinados oligarcas nas cúpulas institucionais seria mais proveitoso à cidadania uma que limitasse temporalmente a permanência nos tribunais, facultada a aposentadoria pelo tempo proporcional ou o retorno à classe inicial da carreira. Teríamos a horizontalização da magistratura, que não há de ser hierarquizada. Quem deseja bem servir o faz em qualquer lugar e não apenas nas cúpulas que encastelam e afastam da realidade.
 
Publicado originariamente na Tribuna do Advogado, Ano XLII, número 532, nov. 2013.
 

quarta-feira, 6 de novembro de 2013

Prisioneiro Político


os crimes são desatendimentos a comandos jurídicos do Estado, ente político. Daí é que todo crime é político. Mas, as motivações podem ser políticas ou não. Um anarquista que vá às ruas manifestar contra o poder político tem clara motivação política e sua prisão tem esta natureza”.

Max Weber diz que há três fundamentos para o exercício do poder: mítico, tradicional e racional-legal. Quem desobedece a um preceito religioso, do poder mítico, comete pecado. Quem desatende ao pai ou ao ancião da comunidade transgride um dever tradicional. Mas, os crimes são desatendimentos a comandos jurídicos do Estado, ente político. Daí é que todo crime é político. Mas, as motivações podem ser políticas ou não. Um anarquista que vá às ruas manifestar contra o poder político tem clara motivação política e sua prisão tem esta natureza. O Brasil tem o terceiro maior contingente carcerário do mundo, proporcionalmente à sua população. Um terço aguarda julgamento.

Das centenas de milhares de decisões que proferi em 20 anos de carreira, correspondentes às minhas convicções e concepção da ordem jurídica, relembro com veemência de apenas uma: da guarda de um recém-nascido em Itaperuna, em 1994. Como andará aquela criança? A escolha do lar que fiz para ela, quando mais de um era possível, foi a mais adequada?

No último domingo eu era o juiz plantonista da Cidade do Rio. Pela manhã, recebi pedido de habeas corpus em favor de Baiano e o remeti ao Ministério Público. No meio da tarde a autora perguntou pela decisão. Fui ao cartório saber do processo. Não faltaram vozes contra o preso: que era manifestante presente em todas as passeatas, desordeiro, vândalo etc... Eu apenas queria informação sobre o paradeiro do processo. O habeas corpus questionava a legalidade da prisão em flagrante e fora impetrado contra o delegado. Mas, Baiano está preso em razão de prisão preventiva decretada judicialmente. No plantão o juiz não pode reapreciar questões já decididas. Indeferi a liminar. Não lhe pude restituir a liberdade com aquele habeas corpus.

No plantão, deixei de conversar com assessora de um subsecretário municipal e receber ‘memorial prévio’ contra possíveis ações a serem propostas relativas ao ‘Porto Maravilha’. Não recebi porque estranho é o judiciário quando funciona fundado em razões que não sejam jurídicas.

 
Publicado originariamente no jornal O DIA, em 06/11/2013,pag. 20.

segunda-feira, 4 de novembro de 2013

Liberalismo e escravidão


O mercado editorial fala em liberdade, mas o que pretende é a apropriação da imagem e história de vida de pessoas notáveis, subtraindo do biografado o direito de uso da obra sobre ele. Trata-se de caso exemplar de transformação de pessoa em objeto ou mercadoria, sem o seu consentimento, com exclusão da possibilidade de uso da obra pelo próprio biografado a pretexto de propriedade imaterial do autor”.

O artigo "A esquerda caviar não liga para Amarildo", de Roberto Constantino, requentado e publicado no GLOBO, criticou o jantar beneficente realizado na casa da produtora Paula Lavigne, onde se arrecadou dinheiro para a aquisição de uma casa para a família de Amarildo. Foi dito que Amarildo é apenas um símbolo e se reclamou da falta de solidariedade aos policiais mortos em combate. Não se falou daqueles que ordenam a política de segurança militarizada e que pouco se importam se quem morre é um policial, trabalhador ou traficante. A tônica do artigo foi o ataque à Paula, do grupo Procure Saber. 
O jantar arrecadou recursos para a aquisição da casa e do custeio de pesquisa sobre os desaparecidos. Ano passado foram 5900. O liberal que critica a liberdade de recursos próprios nega o próprio liberalismo. Amarildo é um símbolo da violência do Estado contra os excluídos. É a expressão da política implantada nas áreas militarizadas. E tem nome. Dos outros, pouco sabemos e queremos saber. Foi a mídia alternativa e parte da sociedade civil que impediram fosse Amarildo contabilizado como número, como os demais.
Quem participou do jantar não defende a quebra de vitrines de bancos, nem qualquer destruição. Mas também não pede prisões. Menos ainda porque os dirigentes dos bancos não pediram ao Estado a defesa dos seus vidros. A apuração do crime de dano se faz com o pedido do prejudicado e o liberalismo, por princípio, não há de pretender a tutela do Estado quando não reclamada. O chavão anticomunista, do tempo da Guerra Fria, que desorientou o artigo situa os participantes do jantar do “lado errado na batalha das ideias”, porque dele também participou quem defende os direitos à intimidade, à imagem e os decorrentes da personalidade. O liberalismo dos que concebem a existência de uma “verdade” escorrega no totalitarismo. O mercado editorial fala em liberdade, mas o que pretende é a apropriação da imagem e história de vida de pessoas notáveis, subtraindo do biografado o direito de uso da obra sobre ele. Trata-se de caso exemplar de transformação de pessoa em objeto ou mercadoria, sem o seu consentimento, com exclusão da possibilidade de uso da obra pelo próprio biografado a pretexto de propriedade imaterial do autor.

Temos precedente no Brasil! O liberalismo conseguiu fazer conviver no Brasil o discurso liberal e a escravidão. O romantismo dos discursos destoava da realidade da qual se falava. Todas as rebeliões dos liberais no Brasil visaram a não pagar imposto e nenhuma teve por fundamento a liberdade. Os liberais no século XIX usaram e abusaram do discurso sobre a liberdade, justificando suas condutas de transformar pessoas em mercadoria. No presente momento, os liberais defendem a apropriação de bens imateriais alheios, dentre os quais os decorrentes da personalidade, e para os que nada têm para ser apropriado a sujeição à tortura, morte ou desaparecimento. A dignidade da pessoa humana repudia a truculência e por isso“Somos todos Amarildo”.

Publicado orginariamente no jornal O Globo, no dia 05/11/2013, pag. 19.