segunda-feira, 2 de dezembro de 2013

Ética e exercicio das liberdades: O papel de cada um não há de ser de papel


“A ética republicana impõe a separação entre o público e o privado. Mas, também o reconhecimento da supremacia da sociedade sobre o Estado. A ética republicana impõe a democracia que se caracteriza pelo poder do povo. Não só através dos seus representantes, mas também diretamente. Ocupando a cidade é o que dá a exata dimensão da cidadania. A criminalização dos manifestantes e dos movimentos sociais é uma expressão da violência ilegítima do Estado; da truculência contra a democracia. É uma violação da ética que há de orientar a relações públicas, tendo-se o Estado como ente instituído e a sociedade como instituidora e titular de todo o poder”.
Eu gostaria de abordar o conceito de ética não a partir do parâmetro grego que dá fundamento à cultura ocidental, mas a partir da cultura oriental, mais especificamente da cultura hindu.
No Bagavá Ghita, que é parte do Mahabarata, vamos encontrar conto épico no qual Árjuna solicita a Krishna que o eleve aos céus a fim de que possa conhecer aqueles com quem vai combater. Ciente de que seus tios, avós, professores, irmãos, netos e amigos estavam enfileirados no exército do lado oposto,  Árjuna desistiu de lutar. Mas, Árjuna foi exortado de que sendo um guerreiro seu dever era lutar. A realização de sua missão não se realizaria sem a luta que deveria travar. E mais, se os seus parentes, amigos e professores estavam do outro lado, isto se devia aos papéis a eles incumbido ou por eles escolhido e que portanto deveria ser por eles também desempenhados.
Este mito nos remete à eticidade a nós imposta diante dos papéis que nos são incumbidos. Viver eticamente é desempenhar o papel que a cada um de nós foi acometido ou por nós escolhido.
Ética é frequentemente tratada como sinônimo de costume. Daí se dizer que é a doutrina dos costumes. Mas na concepção aristotélica, ética é adjetivo e expressa uma virtude. A virtude ética seria a que se desenvolve na prática e caminha para o atingimento de um fim e serve para a realização da justiça, da amizade, da fraternidade e de outros valores indispensáveis à coexistência dos indivíduos em consideração uns com os outros.
Assim, a eticidade não se confunde com o moralismo, que se traduz em exigência de comportamentos alheios, nem sempre seguidos por aqueles que formulam as exigências. Em debate público em tempos pretéritos com um Senador da República, que exercia grande influência na Bahia e nas instituições brasileiras, um ministro do STF disse que “o moralismo é a ética de quem não tem ética”.
Não pretendo aqui discorrer sobre os significados de ética. Nem tampouco da história do conceito, porque demandaria uma análise da própria história da filosofia, tomando a história do ocidente como marco. Nem vou situá-la no campo dos sistemas de idéias ou das concepções que a classifica. Tampouco, neste pouco tempo, pretendo discorrer sobre imperativos e juízos, sejam de realidade ou de valor. Mas, é preciso reconhecer que há uma linguagem própria da ética e que tem natureza prescritiva. Assim, não é possível falar-se de ética sem conceber que ela se expressa por meio de juízos de valor e havemos de tomar em consideração os estudos sobre a sua linguagem. A ética há de ser propriamente considerada e não confundida com o moralismo ‘neo-udenista’ que impregna os discursos de um certo tipo de marketing pessoal.
O primeiro pressuposto da ação ética é de que ninguém pode ser ético consigo mesmo, pois a ética pressupõe a condução diante de outro. Igualmente ética não se pode confundir com moralismo, pois este não pressupõe a condução do sujeito ético, mas uma exigência em face de outrem, de quem se cobra um comportamento desejado. Ser ético é conduzir-se em respeito ao outro, às suas qualidades, aos seus direitos e, sobretudo, à sua liberdade.
A eticidade pode ser exercida perante outros indivíduos, perante uma coletividade, perante toda a sociedade ou todos os demais seres que ocupam o planeta ou que poderão vir a ocupa-lo. Neste sentido, o discurso ambientalista é ético, pois pressupõe o uso adequado dos recursos e da qualidade de vida na terra, respeitando os demais seres e visando propiciar condições de vida aos indivíduos do futuro. Igualmente o discurso republicano, que obsta a apropriação privada do que é comum ou sugere a construção de espaços de compartilhamento. A defesa da liberdade é ética, pois pressupõe o reconhecimento do direito de outro. É ética a conduta que reconheça ao outro o poder de exercício legítimo de suas potencialidades.
E é sobre isto que eu devo tratar agora. Sobre a eticidade, sobre a liberdade e sobre as liberdades.
Liberdade, do ponto de vista individual, é o direito de buscar e fazer tudo que a outrem não prejudique. Mas, liberdades, tomadas no plural são os direitos civis e as liberdades que protegem o indivíduo do poder arbitrário do Estado, evitando o abuso de poder e a violação à vida privada dos cidadãos. A abrangência de tal conceito não pode sofrer variações em decorrência das circunstâncias.  Se as liberdades são ‘direito’, podem ser exigidas em face de quem a elas se oponha e às instituições cabe assegurá-las. Mas, as liberdades também podem ser violadas pelo capital e pelas corporações que o representa e neste sentido a eticidade republicana impõe que o Estado esteja ao lado da sociedade, ainda que difícil concebê-lo para outro fim que não a defesa dos interesses que o instituiu.
A recente discussão sobre as biografias de pessoas vivas é emblemática. As duas maiores editoras do país, majoritárias no campo das comunicações sociais, pela titularização de jornais, rádios, TVs e outros negócios na mesma base territorial, falam em liberdade, mas o que pretendem é a apropriação da imagem e história de vida de pessoas notáveis, subtraindo do biografado o direito de uso da obra sobre ele. Trata-se de caso exemplar de transformação de pessoa viva em objeto ou mercadoria, sem o seu consentimento, com exclusão da possibilidade de uso da obra pelo próprio biografado a pretexto de propriedade imaterial do autor.
Dentre as liberdades podemos citar o direito à liberdade ir e vir, o direito à segurança, à liberdade de consciência, à liberdade de manifestação do pensamento, à liberdade de crença e religião, a liberdade de associação e reunião, o direito à privacidade, o direito à racionalidade e previsibilidade do pronunciamento de acordo com o padrão normativo comum se diante de um tribunal, o direito a um julgamento justo e ao cumprimento de pena – se condenado -, com reconhecimento das qualidades inerentes à condição humana, bem como o direito de ter o que for construído pelo trabalho e defender a si mesmo.
Este é um momento difícil para falar de liberdade ou de liberdades. No Brasil – por toda parte – a letra da Constituição que diz que ninguém será preso, salvo em flagrante delito ou ordem escrita de autoridade judicial competente é letra morta. As ‘prisões para averiguação’ são uma realidade em todo o país, seja de trabalhadores, jovens pobres e negros, seja de manifestantes. A letra da Constituição somente tem vigência e eficácia em setores nobres da sociedade. Trata-se de prática legitimada pelas instituições, em nome de suposta necessidade da ordem pública.
Por imperativo ético, os órgãos do Estado hão de se mobilizar para garantir o direito à liberdade, primeiro dentre aqueles para a mobilização por uma sociedade justa e fraterna e na qual possam os indivíduos desenvolver suas potencialidades. Mas, ainda que ninguém seja contra a liberdade, não faltam aqueles que são contra as liberdades alheias. Igualmente, ninguém é contra o direito de opinião, ainda que não faltem aqueles que não reconhecem como legítimos os posicionamentos contrários aos seus.
Não é apenas o Estado – abstratamente considerado - que é inimigo da liberdade. Piores são os interesses defendidos e os estamentos burocráticos, encastelados e afastados da realidade, sequiosos na defesa de seus próprios interesses, nem sempre legítimos. Torna-se gravíssimo para as liberdades quando os interesses defendidos são daqueles que – incrustrados nos aparelhos do Estado - se armam contra a sociedade em benefício próprio, expressão do patrimonialismo.
A defesa, pelos agentes do Estado, dos interesses alheios - seja do capital, sistemicamente considerado, ou das grandes corporações que o representa - expressa opção no manejo dos recursos públicos. Mas, a defesa, por agentes do Estado, de interesses próprios - notadamente por meio das armas colocadas pelo Estado à sua disposição - torna as condutas mais cordiais, em sentido inverso do empregado por Sérgio Buarque de Hollanda e para a qual chamou atenção Cassiano Ricardo. O assassinato da Juiza Patrícia Acioli no Estado do Rio de Janeiro, com 21 tiros e sob xingamentos, nos dá dimensão do que as forças estatais são capazes, quando contrariados os seus interesses. Nos dá dimensão do que o Estado é capaz se não estiver mobilizado para reconhecer sua atuação como autêntico serviço público e nos limites da legalidade.
Mas, não só indivíduos armados pelo Estado são capazes da truculência contra as liberdades. Todo poder ilegítimo somente se afirma pela violência. O poder legítimo se exerce por sinais. As pompas e sinais exteriores de autoridade são apenas demonstração da fraqueza de quem ordena. Foi o enfraquecimento da realeza, ante a ascensão da burguesia, que produziu palácios, ritos solenes e tronos banhados a ouro. O poder legítimo dispensa as exterioridades e a violência para demonstrar sua existência, presença e efetividade.
Toda autoridade repousa em última instância na força. Mas, o exercício da força é demonstração de que a autoridade falhou. Pela violência a autoridade se impõe, quando voluntariamente não é acatada. A autoridade legítima é voluntariamente acolhida. A eticidade das relações Estado-cidadão dispensa a força.
Mas, a criminalização dos movimentos sociais no presente momento é cabal demonstração de que as autoridades pretendem se reforçar pelo uso da força, por não disporem dos meios de convencimento dos cidadãos. Organizam-se pelos entes federados diversos órgãos armados e militarizados, sem previsão legal, numa grave violação da eticidade do Estado de Direito. As Guardas Municipais militarizadas são exemplos. Em regra, são empresas municipais de vigilância a quem se acomete poder de polícia. A Força Nacional é outra. Sem previsão constitucional, afirmou-se com existência própria, tal como se fosse uma milícia do poder central.
É um momento de ascensão do Estado Policial em sufocamento das liberdades e violação da eticidade do Estado Democrático de Direito.
Em seu último pronunciamento público o reitor da Universidade de Salamanca, Miguel de Unamuno, dirigiu-se aos ‘camisas pretas’ do franquismo e lhes disse que poderiam vencer, em razão da força, mas que a ninguém convenceriam por lhes faltar razão. Para convencer é preciso ter razão e direito.
Na tradição judaico-cristã temos o exemplo de Moisés, que guiou o povo hebreu pelo deserto durante 40 anos em busca da ‘terra prometida’. Guiar o povo em tempo de abundância até administradores ineptos são capazes. Mas, pelo deserto, e em tempos de escassez, é preciso inspirar crença na legitimidade. Ainda que Moisés fosse um profeta armado não foi pela força que conduziu o povo pelo deserto. Afinal, os fortes não podem com os fracos quando estes se associam. E o que gera as manifestações e as rebeliões não são as liberdades, mas a opressão.
Seria risível, não estivessem as liberdades sendo sacrificadas, que bombinha do tipo ‘cabeça de nego’, com as quais crianças brincam nas festas juninas, miniatura de máscara veneziana de porcelana e livro de autores de esquerda, encontrados em casas de manifestantes, sejam considerados ‘corpos de delito’ a justificar a prisão de estudantes.
Mas, em momento de supressão das liberdades havemos de fazer distinções e digno de registro é a atuação da Ministra Maria do Rosário, por se colocar ao lado da sociedade ou tentar fazer o que lhe é possível para assegurar os direitos. Outras autoridades haveriam de ser citadas, mas para evitar injustiça fiquemos apenas com o exemplo da ministra, na pessoa de quem reportamos a todos os que têm idêntico comportamento cerrando fileiras ao lado dos defensores dos direitos da pessoa humana.
Ao contrário do que recomenda a ética republicana e do Estado de Direito e Democrático tenho tem-se promovido o encarceramento em massa no Brasil. Na falta de outro tipo no qual se enquadrar, tem-se optado – no Estado do Rio de Janeiro, por exemplo - pelo indiciamento por composição de organização criminosa. Mas, a manifestação coletiva não expressa associação. Menos ainda que seja associação para o cometimento de crimes. O direito de manifestação do pensamento é constitucional e sua violação implica violação à ética republicana, à eticidade do Estado de Direito e às liberdades. Mas, o que se busca apurar não são os crimes, pois não se tem notícia de apuração dos abusos policiais contra a sociedade. O que se busca é intimidá-la. Os dirigentes institucionais, assustados com a reação da sociedade, imputam-lhe crimes e a qualifica de vândala. É o próprio poder contestado que atua em ilegítima defesa. A defesa do Estado é ilegítima, porque não há ameaça de mal quando a sociedade assume o cuidado com o que é seu. Os crimes imputados aos manifestantes não são ocorrências concretas no mundo natural, mas a descrição dos tipos abstratos constantes da lei como hipótese.
Vou retornar ao começo desta exposição para recolocar o discurso no âmbito da eticidade da conduta de cada um, de acordo com o que de cada um se espera.
Cada um de nós que ocupa um cargo, emprego ou função pública tem um múnus; um dever a cumprir. Se a uns cabe a honra de lutar por Tróia a outros cabe a glória de lutar por Esparta. O papel de Árjuna era lutar, pouco importando quem estivesse do lado oposto. A cada um cabe um papel, nem sempre conciliável com aquele que expressa deveres ou interesses diversos. A divisão de poderes e de funções impõe que cada atribuição contraposta, própria do sistema de freios e contrapesos, se exerça, sem acomodação à outra, mas igualmente sem atritos que expressem invasão da esfera de competência alheia.
Chefes institucionais de poderes e órgãos diversos, por conivência ou incompreensão dos seus papeis institucionais, aliam-se em prol do que chamaram de ‘interesse geral’, desconsiderando o conflito de interesses no seio da sociedade e que foi evidenciado pelas manifestações populares. E desconsideram também a ordem jurídica e o princípio da separação dos poderes.
O poder que integro, o Poder Judiciário andou ao longo do tempo corroborando as políticas violadoras de direitos fundamentais e sociais. Ainda hoje o faz. Em outros lugares, com arroubos de distanciamento para denotar contrariedade e conquistar descontentes, coloca-se na oposição para fins midiáticos, em prol de interesses não explicitados.
A sociedade espera dos poderes o respeito absoluto e incondicional aos valores jurídicos próprios do Estado Democrático de Direito; a mobilização e promoção da conscientização crescente das funções públicas como proteção efetiva dos direitos da pessoa humana, individual e coletivamente considerada, e a consequente realização substancial, não apenas formal, dos valores, direitos e liberdades do Estado Democrático de Direito; a defesa da independência dos poderes não só perante os demais poderes como também perante grupos que tradicionalmente usurparam seus comandos no interesse dos seus clãs; a democratização da estrutura do Estado; à atuação dos órgãos públicos como autêntico serviço público que, respondendo ao princípio da transparência, permita ao cidadão o controle de seu funcionamento; a promoção e a defesa dos princípios da democracia pluralista, bem como a difusão da cultura jurídica democrática.
A ética republicana impõe a separação entre o público e o privado. Mas, também o reconhecimento da supremacia da sociedade sobre o Estado. A ética republicana impõe a democracia que se caracteriza pelo poder do povo. Não só através dos seus representantes, mas também diretamente. Ocupando a cidade é o que dá a exata dimensão da cidadania. A criminalização dos manifestantes e dos movimentos sociais é uma expressão da violência ilegítima do Estado; da truculência contra a democracia. É uma violação da ética que há de orientar a relações públicas, tendo-se o Estado como ente instituído e a sociedade como instituidora e titular de todo o poder.
Ainda que cada um - no respectivo campo - desempenhe o seu papel, da conjugação das atuações resulta ação coletiva.  Mobilizar é conjugar vontades para atuar na busca de um propósito comum, sob uma interpretação e um sentido também compartilhados.
São frequentes as mobilizações para a guerra, mas havemos de mobilizar para a paz; são frequentes as mobilizações para a ‘demonização’ de pessoas ou grupos sociais, notadamente daqueles que se situam no campo dos excluídos, e neste sentido a mídia tem prestado grande desserviços aos direitos humanos, mas havemos de mobilizar para a garantia dos direitos; é possível mobilizar a sociedade e os recursos públicos para um campeonato de futebol, mas havemos de mobilizar para efetivar os objetivos fundamentais da República, contidos nos art. 3º da Constituição, quais sejam, construir uma sociedade livre, justa e solidária; garantir o desenvolvimento nacional; erradicar a pobreza e a marginalização e reduzir as desigualdades sociais e regionais; promover o bem de todos, sem preconceitos de origem, raça, sexo, cor, idade e quaisquer outras formas de discriminação.
Se conjugarmos nossos esforços em prol das liberdades e garantias dos direitos estaremos mobilizados socialmente e vivendo eticamente.






João Batista Damasceno[1],
doutor em Ciência Política (UFF),
juiz de direito titular da 1ª Vara de Órfão e Sucessões do
Rio de Janeiro ((1ª VOS) e
membro da Associação Juízes para a Democracia/AJD.




[1] Exposição apresentada no painel ÉTICA E EXERCÍCIO DAS LIBERDADES no ‘XIV seminário internacional ética na gestão: ética, democracia, justiça e mobilização social’, organizado pelo Conselho de Ética da Presidência da República, Brasília, DF, nov. 2013.

Disponível no site: http://etica.planalto.gov.br/noticias/ultimas_noticias/2013/12/etica-e-exercicio-das-liberdades-dr.-joao-batista-damasceno.pdf
 
 

 

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