segunda-feira, 31 de março de 2014

Nova tipologia da violência


“Com o regime empresarial-militar, um novo padrão de eliminação de pessoas consideradas inimigas da lei e do regime se espalhou pelo país. Este padrão não foi substituído por padrão democrático com a abertura política nem por submissão do Estado de Direito com a Constituição de 1988”.

A história do Brasil é uma história com violência, a começar pelo genocídio dos povos originários. Mas, nos últimos 50 anos, o que tivemos foi o paulatino emprego das forças do Estado contra a sociedade e a militarização da segurança pública.

Na Baixada Fluminense, depois do golpe empresarial-militar de 1964, o padrão da violência pré-64 não mais subsistiu. A luta pelo poder político, a eliminação dos adversários e a admoestação de grupos sociais foram militarizadas. A princípio comandada pelo capitão José Ribamar Zamith, da 1ª Companhia de Polícia do Exército, a ela se agregaram as polícias, para a repressão e extermínio, e grupos privados para a defesa de seus interesses.
 
O golpe empresarial-militar de 1964 mudou a tipologia da violência. Em 1968 policiais do 6º Batalhão de Infantaria da Polícia Militar mataram com rajadas de metralhadora, diante da população, o bandido Roncador, mesmo após haver jogado fora sua arma e saído do bueiro onde se encontrava com as mãos na cabeça.

O general Amaury Kruel, instituidor do Serviço de Diligências Reservadas, é tido como o criador do Esquadrão da Morte, do qual resultou a diminuição de roubos e aumento de mortos. Mas o Esquadrão da Morte passou a ser noticiado com entusiasmo na mídia depois de matar em 1964 o bandido Cara de Cavalo, responsabilizado indevidamente pela morte do detetive Milton Le Cocq.

Em 1968 policiais do Estado da Guanabara, fugindo da atuação do então secretário de Segurança, general Luiz França de Oliveira, na repressão aos bicheiros ligados à velha ordem política, foram atuar na Baixada Fluminense.

Em 1969 o delegado de Belford Roxo, Lisis Nogueira, atribuiu 120 homicídios ao Esquadrão da Morte. Em abril de 1970 foi criada a Comissão Especial de Investigação, que foi extinta no mesmo ano com a recomendação de apuração de apenas um dentre os 300 crimes atribuídos ao esquadrão.

Nos anos 70 foi promotor na Comarca de Nova Iguaçu José Pires Rodrigues, e delegado da 3ª Região Policial, Baixada Fluminense, Péricles Gonçalves. Péricles afirmava que na sua região “polícia não precisava se esconder no anonimato para matar os inimigos da lei” e se policial matasse bandido seria obrigado a instaurar inquérito, mas daria medalha ao autor da façanha, por ter agido em legítima defesa. Esta é a origem dos autos de resistência.

Com o regime empresarial-militar, um novo padrão de eliminação de pessoas consideradas inimigas da lei e do regime se espalhou pelo país. Este padrão não foi substituído por padrão democrático com a abertura política nem por submissão do Estado de Direito com a Constituição de 1988.


Fonte: Publicado originariamente no jornal O DIA, em 30/03/2014, pag. 18.

domingo, 23 de março de 2014

Política de extermínio

“A reforma do ensino imposta por militares e tecnocratas em 1964, tornada pública em 1966 e oficializada pela Lei 5.540/68, decorreu do ‘acordo MEC-Usaid’, estabelecido entre o Ministério da Educação (MEC)e a United States Agency for International Development (Usaid). O controle da Educação é o controle das consciências. As elites criaram escolas para seus filhos, ficando os filhos dos trabalhadores nas escolas públicas cuja qualidade conhecemos.”

Prisões arbitrárias, antissemitismo, cerceamento das liberdades e torturas maculam a Era Vargas. Sem isto, Getúlio Vargas haveria de ser lembrado pela organização do Estado Nacional, pela industrialização, pelos direitos trabalhistas e a CLT, pela Educação pública de qualidade, pela instituição da Saúde pública e por muitas outras realizações que perduram até hoje, ainda que dilapidadas por governos posteriores. Na Baixada temos a abertura dos canais que transformaram pântanos em áreas agricultáveis e nas quais hoje moram milhares de trabalhadores. Parecendo rios naturais, muitos foram abertos no Estado Novo. As transformações pelas quais o Brasil passou na Era Vargas favoreceram o capital, mas igualmente a classe trabalhadora. 

Do golpe empresarial-militar de 1964 podemos dizer o contrário. É lembrado pelas torturas no âmbito dos quartéis, desaparecimentos de opositores, cassações de mandatos, supressão das garantias dos juízes, censura e atentados a bomba contra a sociedade. Ainda que isto não tivesse existido já teria sido uma lástima. O regime implantado em 1964 interrompeu projeto político que visava ao desenvolvimento do Brasil e melhoria das condições de vida para o povo.

A reforma do ensino imposta por militares e tecnocratas em 1964, tornada pública em 1966 e oficializada pela Lei 5.540/68, decorreu do ‘acordo MEC-Usaid’, estabelecido entre o Ministério da Educação (MEC)e a United States Agency for International Development (Usaid). O controle da Educação é o controle das consciências. As elites criaram escolas para seus filhos, ficando os filhos dos trabalhadores nas escolas públicas cuja qualidade conhecemos.

Além de obstar o caminho para o desenvolvimento nacional independente, o regime oficializou a truculência. A militarização da segurança e a política de extermínio de pretos e pobres são herança deixada pela Escola das Américas, instituição de ensino de tortura e terrorismo mantida pelos EUA no Panamá, pela qual passaram muitos militares brasileiros. As escutas clandestinas de conversas telefônicas se naturalizaram no regime e hoje até secretarias de Administração Penitenciária têm aparelho de escuta chamado ‘Guardião’, embora não tenham poderes investigatórios e não possam pedir autorização judicial para legalmente promover interceptação de comunicação.

O entulho do regime autoritário de 1964 não foi removido e com seus métodos os agentes do capital se impõem, falam em segurança e fingem se comover com uma mãe morta e arrastada por um camburão.

Publicado originariamente no jornal O DIA, em 23/03/2014, pag. 18.

domingo, 16 de março de 2014

O golpe no povo brasileiro

“Amparado na miopia de nossa classe política, no arcaísmo do empresariado, nos interesses dos senhores de terras e em empresas de comunicação associadas ao capital internacional, o golpe militar-empresarial de 1964 foi um golpe na independência nacional, na cidadania e no projeto educacional de Anísio Teixeira e Darcy Ribeiro.

“Não foi um golpe contra comunistas, grevistas e subversivos, como tentou fazer crer a propaganda oficial. Foi um golpe para nos mantermos submetidos a um modelo político de dependência ao capital internacional, representando pelos EUA. Os interesses que promoveram o Golpe de 1964 foram aqueles denunciados na carta-testamento de Getúlio Vargas, que Brizola, melhor que ninguém, soube interpretar.”

A participação dos EUA no golpe empresarial-militar de 1964 começou muito antes daquele 1º de abril, conforme comprova a abertura dos arquivos daquele país. O que estava em jogo era o poder de influência dos EUA sobre o Brasil e demais países do continente. No século 19 os EUA se lançaram na política externa e se reservaram, como área de influência, a América Central e do Sul.
Dos 50 estados que compõem os EUA, 29 foram incorporados à União no século 19. Até então eram apenas 16; os cinco restantes foram incorporados no século 20. A marcha para o Oeste no século 19 significou a incorporação de parte do território mexicano, terra do petróleo. O Alasca e o Havaí foram incorporados como estados à União em 1959. Porto Rico está no limbo. Nem é país soberano, nem integra os EUA como estado.

A atual situação da Crimeia, na Ucrânia, dá dimensão da repartição do mundo no século 19 entre as potências. Em 1853 a Rússia promovera a ‘Guerra da Crimeia’, reduzindo a influência ocidental na região. Ao mesmo tempo a França criou o conceito de “América Latina”, pretendendo, em razão da origem comum da língua, estabelecer influência. Mas o presidente estadunidense James Monroe decretara: “América para os americanos”. Desconsiderando que todos vivemos na América e que México e Canadá estão na América do Norte, consideram-se americanos e norte-americanos os estadunidenses. 

Os EUA poderiam ter anexado a América Central e parte da do Sul no século 19, como fez no México. Mas isto traria inconvenientes e optou por se reservar o direito de dirigir suas opções políticas e econômicas. A Revolução de 30, sob o comando de Getúlio Vargas, produziu um novo Brasil e possibilidades de independência. No governo João Goulart havia um projeto nacionalista para o Brasil, que poderia propiciar sua efetiva independência e ampliação das relações externas.

Amparado na miopia de nossa classe política, no arcaísmo do empresariado, nos interesses dos senhores de terras e em empresas de comunicação associadas ao capital internacional, o golpe militar-empresarial de 1964 foi um golpe na independência nacional, na cidadania e no projeto educacional de Anísio Teixeira e Darcy Ribeiro.

Não foi um golpe contra comunistas, grevistas e subversivos, como tentou fazer crer a propaganda oficial. Foi um golpe para nos mantermos submetidos a um modelo político de dependência ao capital internacional, representando pelos EUA. Os interesses que promoveram o Golpe de 1964 foram aqueles denunciados na carta-testamento de Getúlio Vargas, que Brizola, melhor que ninguém, soube interpretar.



Publicado originariamente no jornal O DIA em 15/03/2014, pag. 14. Link: http://odia.ig.com.br/noticia/opiniao/2014-03-16/joao-batista-damasceno-o-golpe-no-povo-brasileiro.html


domingo, 9 de março de 2014

Atos e democracia direta

“Diz a Constituição que todo poder emana do povo, que o exerce por meio de representantes eleitos ou diretamente. A ética republicana impõe a separação entre o público e o privado, bem como a democracia, que se caracteriza pelo poder do povo. Não só através dos seus representantes, mas também diretamente. Manifestações públicas são expressão da democracia direta. A ocupação da cidade pelos seus habitantes é o que dá a exata dimensão da cidadania. A criminalização dos manifestantes e dos movimentos sociais é expressão da violência ilegítima do Estado e da truculência contra a democracia. É uma violação da ética que há de orientar as relações públicas, tendo-se o Estado como ente instituído e a sociedade como instituidora e titular de todo poder. A ética republicana impõe assim o reconhecimento da supremacia da sociedade sobre o Estado”.

Diz a Constituição que todo poder emana do povo, que o exerce por meio de representantes eleitos ou diretamente. A ética republicana impõe a separação entre o público e o privado, bem como a democracia, que se caracteriza pelo poder do povo. Não só através dos seus representantes, mas também diretamente. Manifestações públicas são expressão da democracia direta. A ocupação da cidade pelos seus habitantes é o que dá a exata dimensão da cidadania. A criminalização dos manifestantes e dos movimentos sociais é expressão da violência ilegítima do Estado e da truculência contra a democracia. É uma violação da ética que há de orientar as relações públicas, tendo-se o Estado como ente instituído e a sociedade como instituidora e titular de todo poder. A ética republicana impõe assim o reconhecimento da supremacia da sociedade sobre o Estado. 

A realização do Estado Democrático de Direito pressupõe o respeito absoluto e incondicional aos valores jurídicos que lhe são próprios, o exercício das funções públicas para a proteção dos direitos da pessoa humana e a realização das liberdades públicas, a democratização da estrutura do Estado, a atuação estatal transparente que permita ao cidadão o controle de seu funcionamento e a promoção e a defesa dos princípios da democracia pluralista e a difusão da cultura jurídica democrática. 

São frequentes as mobilizações para a guerra, mas havemos de mobilizar para a paz; são frequentes as mobilizações para a ‘demonização’ de pessoas ou grupos sociais, notadamente daqueles que se situam no campo dos excluídos, e neste sentido setores da mídia têm prestado grande desserviços aos direitos humanos, mas havemos de mobilizar para a garantia dos direitos; é possível mobilizar a sociedade e os recursos públicos para um campeonato de futebol, mas havemos de mobilizar para efetivar os objetivos fundamentais da República, dentre os quais construir uma sociedade livre, justa e solidária; garantir o desenvolvimento nacional; erradicar a pobreza e a marginalização e reduzir as desigualdades sociais e regionais; promover o bem de todos, sem preconceitos de origem, raça, sexo, cor, idade e quaisquer outras formas de discriminação. 

Neste momento de ascensão do Estado Policial, havemos de conjugar nossos esforços em prol das liberdades e garantia dos direitos da pessoa humana. Viver eticamente é viver em consideração ao próximo. Ninguém é ético consigo mesmo, assim como ninguém é defensor das liberdades sem o reconhecimento do direito alheio de discordar.



Publicado originariamente no jornal O DIA, em 10/03/2014, pag. 16. Link: http://odia.ig.com.br/noticia/opiniao/2014-03-08/joao-batista-damasceno-atos-e-democracia-direta.html

segunda-feira, 3 de março de 2014

O cardeal e o Carnaval

O Carnaval é um marco civilizatório de nossa cultura. Antes dele, a prática era o Entrudo, brincadeira violenta e grosseira. Sua principal característica era o lançamento de todo tipo de líquidos contra os passantes embaixo das janelas ou pessoas que fossem encontradas na rua. Normalmente jogava-se o que existia nos penicos. Por semanas as famílias guardavam seus dejetos para lançá-los em quem ousasse sair de casa. Havia repressão ao Entrudo. Mas não foi com ela que o Brasil mudou seus hábitos. A transformação do modo de brincar o Carnaval decorreu de esforço civilizatório, educação e interlocução. O que antes era uma guerra de todos contra todos se transformou em poesia e alegria. 
A apropriação da festa pela indústria cultural não eliminou as iniciativas da sociedade, incluindo os blocos. As tentativas da polícia de impedir o desfile do Chave de Ouro, no Engenho de Dentro, nas Quartas-feiras de Cinzas, evoca a cultura da resistência popular. Os conflitos nos encontros dos blocos Cacique de Ramos e Bafo da Onça foram apenas uma demarcação de espaços durante o Carnaval. 
O Carnaval é uma festa vinculada a sentido religioso. A Semana Santa ocorre na primeira Lua Cheia após o início do nosso outono. Os 40 dias antecedentes à Semana Santa são a Quaresma. Para cristãos, tempo de reflexão, arrependimento e caridade. Antes dela, a festa da carne; o reinado de Momo. 
Na véspera de sagrar-se cardeal, o arcebispo do Rio, Dom Orani Tempesta, concedeu entrevista ao DIA na qual falou sobre sua experiência de ter ido à Cidade do Samba e visitado o Cacique de Ramos. Pastoral, falou de sua missão de cuidar do povo católico e manter o diálogo com todos. Assim, sentiu-se chamado a ter diálogo com a cultura, que o samba o é, e onde, segundo ele, “há um trabalho bonito de poesia”. Não se fez arredio ao Carnaval pelo apelo sexual nele existente. Para ele, “às vezes se tomam alguns aspectos do samba ou mesmo do Carnaval e colocam como se fosse o único, sem se destacar as pessoas que trabalharam, colaboraram para fazer as fantasias”. Isto lhe pareceu “um ponto menor, pois a grande maioria está ali suando, trabalhando até demais, no calor do Rio de Janeiro. Se não houver diálogo, não houver conversa, não será possível conhecer o outro”.
Nestes tempos de intolerância, de cerceamento da interlocução que nos propiciou ao longo da história a conciliação e de criminalização de movimentos sociais e até da advocacia que defende a liberdade, a conduta de Dom Orani pode ser um norte que nos possibilite a convivência com quem pensa diferente.