domingo, 28 de setembro de 2014

Descriminalização do aborto

“Ninguém defende ou é a favor do aborto, porque dói, sangra e traz outras consequências. Mas, se não há pessoa adulta no Brasil que não conheça quem já tenha feito aborto, é preciso ser consequente ante o sofrimento das vítimas da criminalização. 
“A questão vem sendo tratada sob inspiração religiosa, e não como questão da saúde da mulher. Políticos tacanhos ou oportunistas em busca de votos tratam do tema, sem reflexão sobre ele, como se estivessem num programa de auditório. Ainda que no âmbito das religiões o aborto continue a ser tratado como pecado, há de ser descriminalizado a fim de possibilitar assistência à mulher e lhes garantir vida com abundância. Vida não é apenas o oposto da morte, mas a realização plena do indivíduo”.

Jandira dos Santos desapareceu após sair para interromper gravidez indesejada. Seu ex-marido a levou a um ponto de encontro com pessoa desconhecida e ficou esperando seu retorno, o que não aconteceu. Jandira morreu no procedimento, e tentaram desaparecer com seu corpo. Amputaram-lhe as mãos, os pés e a arcada dentária e a carbonizaram para dificultar pronto reconhecimento. Suspeita-se que o dono da clínica clandestina seja um miliciano. Por trás de toda clínica clandestina de aborto têm um agente do Estado que vende a proteção até que outro entre na rota. Jandira era uma mulher pobre e só por isso recorreu a uma clínica clandestina. Deixou uma filha de 12 anos. Outra mulher pobre, Elizângela Barbosa, foi abandonada na rua semana passada em Niterói, após complicação num aborto, e também morreu. 

Milhares de mulheres pobres morrem todo ano em decorrência em abortos malsucedidos. Outras milhares, também pobres, estão sendo processadas criminalmente, submetidas ao mesmo julgamento que componentes de grupos de extermínio. O tribunal do júri, no Brasil, julga os crimes dolosos contra a vida, ou seja, homicídio, infanticídio, instigação ao suicídio e aborto. 

As mulheres da classe dominante não correm risco de processo. Não fazem aborto em clínica clandestina, mas em hospitais particulares onde se internam sob outro pretexto. Quando têm complicação são atendidas por serviço de qualidade lhes posto à disposição. Diferentemente, as mulheres pobres quando têm complicação e sobrevivem são obrigadas a buscar o serviço público de saúde, onde são mal atendidas; seus casos são relatados à polícia e ao MP, que inicia o processo. Em casos mais graves há a possibilidade de desaparecimento com o corpo da vítima, como ocorreu com Jandira, ou o abandono em via pública, como ocorreu com Elizângela. 

Ninguém defende ou é a favor do aborto, porque dói, sangra e traz outras consequências. Mas, se não há pessoa adulta no Brasil que não conheça quem já tenha feito aborto, é preciso ser consequente ante o sofrimento das vítimas da criminalização. 

A questão vem sendo tratada sob inspiração religiosa, e não como questão da saúde da mulher. Políticos tacanhos ou oportunistas em busca de votos tratam do tema, sem reflexão sobre ele, como se estivessem num programa de auditório. Ainda que no âmbito das religiões o aborto continue a ser tratado como pecado, há de ser descriminalizado a fim de possibilitar assistência à mulher e lhes garantir vida com abundância. Vida não é apenas o oposto da morte, mas a realização plena do indivíduo. 



A criminalização gesta a clandestinidade, a precariedade do atendimento e o risco à vida. O desejo sádico e punitivo de alguns, com violação à vida privada, se contrapõe ao direito à saúde das mulheres. 



Publicado originariamente no jornal O DIA, de 27/09/2014, pag. E6. Link: http://odia.ig.com.br/noticia/opiniao/2014-09-27/joao-batista-damasceno-descriminalizacao-do-aborto.html

segunda-feira, 22 de setembro de 2014

MANIFESTAÇÃO NA 5ª AUDIÊNCIA PÚBLICA DA COMISSÃO DE DIREITOS HUMANOS E LEGISLAÇÃO PARTICIPATIVA DO SENADO FEDERAL

MANIFESTAÇÃO NA 5ª AUDIÊNCIA PÚBLICA DA COMISSÃO DE DIREITOS HUMANOS E LEGISLAÇÃO PARTICIPATIVA DO SENADO FEDERAL, VISANDO INSTRUIR A SUGESTÃO 8/2014, QUE TRATA DA REGULAMENTAÇÃO DO USO RECREATIVO, MEDICINAL OU INDUSTRIAL DA MACONHA, RELATIVAMENTE SOBRE OS IMPACTOS NO JUDIÁRIO E NO SISTEMA PENAL, REALIZADA EM 22/09/2014.

Exmo. Sr. Senador Cristovam Buarque, na pessoa de quem saúdo os demais senadores,
Meus colegas da Associação Juizes para a Democracia,
Componentes da mesa,
Senhores e senhoras,
E com satisfação que participo da continuidade das discussões nesta Casa do Congresso Nacional sobre a regulamentação do uso recreativo, medicinal e industrial da maconha. Tenho ciência da falta de consenso nesta casa e na sociedade sobre a liberação desta droga para uso recreativo e do apoio à regulamentação do seu uso para fins medicinais.
Por diversas razões aqueles que se ocupam dos problemas criados pelo proibicionismo defendem a regulamentação da produção, comércio e consumo das substâncias que o Estado finge poder controlar exclusivamente por meio de seu aparato repressivo.
Aqueles que se favorecem do tráfico não têm motivo para participar deste debate. Afinal, têm mercado garantido e não sofrem as limitações que adviriam da regulamentação. Os que usam também não têm necessidade do debate, pois têm fornecimento garantido.
O que se ocupam do tema e dos problemas gerados pelo proibicionismo e são contra o tráfico é que têm motivos de sobra para se manifestarem pela regulamentação..
Ser a favor da legalização, com regulamentação, da produção, comércio e consumo das drogas não implica ser a favor do seu consumo. O que se pretende é reduzir os efeitos danosos do proibicionismo e que a ordem jurídica não tem o poder de normatizar.
Há os que são contrários à produção, comércio e consumo da maconha e, portanto, da sua regulamentação, ante o risco de a maconha levar ao consumo de drogas consideradas mais nocivas.
Não há registro confiável de que o uso de uma substância possa levar ao uso de outra, assim como o consumo de bebidas alcoólicas fermentadas não é caminho para o uso de bebidas destiladas ou outras drogas legais ou ilegais.
Fala-se tão somente dos efeitos danosos das drogas e o Estado se envolve numa campanha salvacionista sem se atentar para o outro lado da questão: o bem-estar provocado pelas drogas. Os que condenam as drogas não concebem o bem-estar que elas proporcionam e os que as utilizam não concebem os malefícios comprovados e apontados pelos seus detratores. E no meio destas concepções inconciliáveis surge o Estado com seu aparato legal e com sua violência a fim de promover a arbitragem por meio da proibição.
A concepção de bem-estar daqueles que usam, e pela demanda forçam a oferta, e a concepção de malefícios daqueles que não querem o uso não pode ser arbitrada pelo Direito e pela força repressiva do Estado.
A questão é antecedente. Diversamente das sociedades que conviveram com as drogas para fins religiosos ou celebrações tradicionais vivemos numa sociedade que difunde a infelicidade coletiva e propicia a busca da satisfação individual.  E para marcar os insatisfeitos o Estado adentra com o proibicionismo.
É o proibicionismo e a guerra às drogas que geram a violência contra crianças, idosos, trabalhadores e outras pessoas que jamais tiveram contato com drogas ilícitas, que pavimentam o caminho para a corrupção e que matam policiais mandados irresponsavelmente para o confronto. Morre-se e mata-se em razão da proibição em número assustador, quando os casos de morte por overdose são raros. Não é o uso das drogas que mata, mas a luta contra elas. A vida e a saúde pública não são defendidas com o proibicionismo, pois apenas serve para justificar o aparato repressivo do Estado e o controle da sociedade. 
A Lei Seca nos Estados Unidos incentivou o desenvolvimento da máfia, da qual Al Capone foi o ícone. Regulamentado o comércio de bebida alcoólica, a máfia estadunidense teve que buscar novos negócios. Pessoas que cultivavam videiras e proprietários de pequenos alambiques clandestinos puderam produzir para consumo familiar sem necessidade de se armar ante o risco da violência para roubo do produto proibido. 
Diversas entidades pugnam pela redução dos efeitos danosos resultantes da guerra às drogas a fim de diminuir a incidência de mortes, crimes e dependência decorrentes da proibição.
Estamos dentre os que advogam a eliminação da política de proibição das drogas e a introdução de uma política alternativa de controle e regulação, com medidas restritivas à produção, comércio e consumo de drogas em razão da idade e dos locais para sua realização, da mesma forma que existem outras restrições para aquisição ou consumo de álcool, de tabaco, para direção de veículos e operação de equipamentos pesados.
Uma criança ou adolescente pode ter dificuldade em comprar bebida alcoólica ou cigarro na maioria dos estabelecimentos comerciais do país, pois é regulamentado. Mas nada a impede de adquirir o tipo de droga ilícita que quiser. Aqueles que ganham com o comércio ilegal têm razões justificáveis, por seus interesses, para a manutenção do proibicionismo e a guerra às drogas.
Mas, há outro efeito danoso. A violação da liberdade individual do usuário. Com quase 21 anos de magistratura e tendo atuado em todas as regiões do Estado do Rio de Janeiro, nos últimos dois anos assumi a titularidade da 1ª Vara de Órfãos e Sucessões da Comarca da Capital. Nela deparei-me com os pedidos de interdição de usuários de drogas a fim de burlar a proibição de internação compulsória e permanente para tratamento.
O que se pode fazer é interditar uma pessoa usuária de drogas e, pela vontade de seu curador, obter-se o consentimento para a internação, tal como se fosse internação voluntária. A vontade do internado pode ser manifestada pelo seu curador, ante a interdição e nomeação de pessoa para por ele exprimir o consentimento.
Desde a edição da lei nº 10.216 de 06 de abril de 2001, que dispõe sobre a proteção e os direitos das pessoas portadoras de transtornos mentais e redireciona o modelo assistencial em saúde mental, parcela da comunidade psiquiátrica ficou ouriçada. Nem Simão Bacamarte, personagem de Machado de Assis, teria sido mais criativo. Clínicas de tratamento de usuários de drogas, sob pretexto de serem portadores de transtornos mentais, têm até advogados a postos para obtenção das liminares em processos de interdição a fim de legalizarem a internação e promoverem a captação da clientela.
A questão da regulamentação das drogas há de ser também analisada pelo seu principal viés: o econômico. Todos os demais fundamentos são subsídio para a análise da questão.
Vou abordar rapidamente a questão da internação compulsória, que é um viés perverso ao lado das políticas de combate às drogas que tanta violência propiciam no seio da sociedade.
O Código Civil dispõe em seu art. 1767 que estão sujeitos à interdição e à curatela “os deficientes mentais, os ébrios habituais e os viciados em tóxicos”.
Assim é que o interditado, por uso de drogas, passa a ter sua vontade manifestada por quem seja curador. E, considerado doente mental, se torna sujeito à internação psiquiátrica, ainda que demandante de laudo médico circunstanciado que caracterize os seus motivos. Se o médico estiver vinculado à clínica de tratamento não será difícil caracterizar a necessidade da internação.
A internação voluntária somente se dá com o consentimento do usuário; a internação involuntária sem o consentimento do usuário e a pedido de terceiro em casos que demandem a intervenção e auxílio e internação compulsória é aquela determinada pela Justiça. O que acontece em alguns casos é que a interdição é utilizada para transformar a internação compulsória em voluntária, ante a substituição da vontade do curatelado pela do curador.
A pessoa que solicita voluntariamente sua internação, ou que a consente, deve assinar, no momento da admissão, uma declaração de que optou por esse regime de tratamento.
Nas internações psiquiátricas involuntárias, a fim de prover assistência emergencial, há a necessidade de comunicação, no prazo de setenta e duas horas, ao Ministério Público Estadual. Não tenho ciência se isto acontece, tampouco o local para o qual se deveria dirigir o comunicante.
As internações compulsórias são determinadas pela justiça levando em conta as condições de segurança do estabelecimento, quanto à salvaguarda do paciente, dos demais internados e funcionários. Como juiz de interdição desconheço o que expressam estes termos, a fim de justificar a supressão da liberdade de uma pessoa. Mas, posso assegurar que direitos e liberdades constitucionais são violados em razão da demonização das drogas caracterizadas como ilícitas.
Em data recente fui procurado por um pai que queria interditar o filho, pois era usuário de drogas. Disse-lhe que o caminho era inadequado e que buscasse outros meios de ajudar a seu filho. O mesmo pai procurou-me posteriormente querendo interditar sua mãe, pois era quem estaria doando dinheiro ao seu filho, com o qual adquiria drogas. De novo disse-lhe que deveria ser grato à sua mãe, pois doando dinheiro ao neto evitava que cometesse crime para sua obtenção ou que fosse morto por dívidas junto ao comércio ilegal. E de novo disse-lhe buscasse outros meios de ajudar a seu filho.
Os malefícios à vida e à liberdade proporcionadas pelo combate às drogas tem sido muito maiores que as próprias drogas. O proibicionismo mata, mas também deforma um sistema que deveria ser de saúde. Quando o usuário é pobre ou morador de rua o problema é mais grave.
Posso afirmar que a internação compulsória, promovida no Rio de Janeiro no contexto na luta contra as drogas e que compreende o que se chama de guerra contra elas, não é medida em prol da saúde ou da sociedade, mas de higienização em favor de interesses econômicos. E, lamentavelmente o Poder Judiciário do qual sou integrante e que deveria ser reconhecido pela garantia dos direitos, por vezes, contribui para a violação deles.
Na ‘guerra às drogas’, as medidas que autorizam a internação compulsória de usuários são um retorno aos séculos XIX e XX quando se internavam os indesejáveis à ordem política a pretexto de curá-los.
O proibicionismo tem gerado mortes, internações, corrupção policial e desestruturação dos serviços públicos. O recente episódio no Rio de Janeiro envolvendo parlamentar que comandava o Choque de Ordem e que recolhia usuários de drogas nos dá dimensão dos problemas criados pelo proibicionismo. Aquele episódio somente não mereceu maior apuração porque é apenas um tentáculo de um híbrido de polvo com a Hidra de Lerna.
No combate às drogas A conduta das autoridades públicas tem mudado de estado para estado. Nos estados do Rio de Janeiro e São Paulo a ação das autoridades tem sido mais intensa. Mas, em todo o Brasil, se tem praticado este tipo de violação aos direitos dos indivíduos tratados como indesejáveis aos olhos de interesses não confessados.
A internação compulsória de pessoas por motivos diversos não se faz sem custeio e o que muitos buscam é o lucro decorrente deste tipo de intervenção.
A internação compulsória de pessoa acometida de transtorno mental, que somente se pode realizar com autorização judicial, difere da internação involuntária, a pedido da família, que se faz para atender à necessidade imediata de ajuda a quem esteja demandando socorro. A diferença pode estar no momento posterior ao socorro. Já na internação compulsória, a vontade do internado continua a ser desconsiderada mesmo se voltar a ter condições de manifestá-la. É este tipo de internação que se tem feito pelo Brasil com as pessoas usuárias de drogas, a pretexto de que estão acometidas de transtorno mental e para salvá-las do seu uso.
A questão da violação dos direitos em razão do consumo de drogas denominadas ilícitas está diretamente relacionada com a classe e o status dos indivíduos na sociedade. A Lei da Reforma Psiquiátrica, 10.216 de 2001, foi um retrocesso na questão. As internações de pessoas como Lima Barreto e o líder da Revolta da Chibata João Cândido, que estiveram em manicômio, haveriam de ser referência para pensarmos a questão. O médico Juliano Moreira atestou que João Cândido era um líder rebelde e não deveria ser mantido em manicômio, possibilitando seu julgamento e absolvição dois anos após a Revolta da Chibata. De forma diferente, poderia ter ficado confinado por toda a vida.
Após a Constituição de 1988 o Poder Judiciário no Brasil goza de garantias e possibilidade de funcionamento em prol da dignidade da pessoa humana, mas as condições históricas de sua formação ainda tornam os juízes vinculados ao poder político dominante e interesses econômicos. Muitas decisões reproduzem trechos de discursos oficiais ou editoriais televisivos. Os juízes, em regra, se vinculam aos interesses ideológicos de setores hegemônicos e fundamentam suas decisões em tais retóricas, apartados da ordem jurídica.
A lei 10.216, pensada tão somente para a internação de pessoas com transtornos psiquiátricos, tem-se prestado à internação indiscriminadamente de usuários de drogas, sob o argumento de que um em cada dois dependentes químicos apresenta algum transtorno mental, e que lhes é comum a depressão. A estigmatização propiciada pela ilegalidade das drogas se presta a todo tipo de violação aos direitos fundamentais. Tive acesso a um conjunto de laudos de um medico que sempre apontava no sentido positivo da interdição de usuário de droga, sob o pretexto de que a pessoa tinha variação de humor ao longo do dia. Desconsiderava-se que não era a droga que levava à depressão. O processo era o contrário. Era a depressão que levava à droga.
Programas de combate aos males decorrentes do uso de drogas estão produzindo euforia em alguns profissionais e religiosos, similar ao de algumas drogas.
O abuso no uso de drogas, lícitas ou ilíticas, é tema de saúde pública, mas, ganhou um viés policialesco ou salvacionista, pelos que desejam efetuar encarceramento e pelos que se julgam capazes de salvar almas alheias, não sem remuneração.
Desde que a internação psiquiátrica compulsória fora vedada, havia profissionais desalentados com a perda do poder de encarceramento. Hoje, assanham-se com a possibilidade de internação que chamam involuntária e que distinguem de internação compulsória, embora com o mesmo efeito sobre o corpo do 'interno'.
O viés de saúde pública quando do abuso foi abandonado e a questão transferida para as sedes policiais. Em artigo no jornal fluminense O DIA, por mim replicado em outro artigo, um psiquiatra, embevecido com a possibilidade de 'internações involuntárias', escreveu que “o próximo passo é acabar com as marchas da maconha”, ainda que o STF já tenha decidido que a liberdade de manifestação pela descriminalização e regulametação das drogas não se confunde com o uso delas.
É indiscutível que uma pessoa drogada que puder causar dano a outrem há de ser contida; se o causar, deve ser responsabilizada; se em situação de risco inconsciente deve ser ajudada, mesmo contra a sua vontade. Mas, uma vez recolocada fora de risco e cientificada do perigo não se lhe pode negar o direito de conduzir sua vida, ainda que seja para a autodestruição.
Nenhuma sociedade se constituiu sem o uso de drogas em suas festividades e cerimônias, notadamente religiosas, às celebrações e à alegria coletiva. Somente a nossa sociedade difundiu o uso da droga para a busca do prazer individual.
O problema não está no uso que se faz da droga ou nas conseqüências posteriores. Nosso problema está num modelo econômico-político-social que produz a insatisfação, a exclusão e a infelicidade e propicia a busca do prazer por meio do consumo de drogas lícitas ou ilícitas. Usuários de drogas mais baratas, por sua maior vulnerabilidade e desprestígio social, estão mais sujeitos às violações aos seus direitos de pessoa humana.
A regulamentação da produção, comércio e uso de drogas pode ser o começo para passarmos a tratar da questão à luz do dia e vislumbrarmos os efeitos danosos do proibicionismo.
A regulamentação do uso recreativo, medicinal e industrial da maconha pode não ser a porta de entrada para o consumo de drogas mais pesadas, mas será a porta de entrada neste assunto a fim de podermos tratar esta questão com a seriedade que demanda ser tratada em proveito da sociedade, da ordem jurídica que cotidianamente é violada em razão do proibicionismo e das instituições que a sociedade constituiu e que demanda sejam aperfeiçoadas.

domingo, 21 de setembro de 2014

Semelhanças e diferenças

“O que há de distinguir uma ditadura de uma democracia não pode ser o nome lhes atribuído, mas as práticas sociais e institucionais. A democracia não pode resguardar apenas o direito de parcela privilegiada da sociedade, mantendo a exclusão e a violação dos direitos dos pobres, sob pena de se tornar imprestável ao povo, no prejuízo da sua própria manutenção. A redemocratização e os direitos dela decorrentes precisam ser estendidos à periferia. Democracia não é apenas direito de votar, mas, também, de participar da vida cidadã e gozar de bens comuns.”

Qual a diferença entre as Forças Armadas que oprimiam jovens de classe média durante os governos militares do Brasil e as Forças Armadas que oprimem jovens negros das favelas e periferias no atual governo? 

Qual a diferença entre o Dops (Departamento de Ordem Política e Social), órgão da polícia estadual que prendia militantes e fazia controle ideológico durante a ditadura militar, e a DRCI (Delegacia de Repressão aos Crimes de Informática), órgão da polícia estadual que prende militantes e faz controle ideológico no atual governo? 

Qual a diferença entre as perícias feitas por Harry Shibata, acusado de produzir laudos falsos durante a ditadura militar, atestando como suicídios as mortes de Manuel Fiel Filho e Vladimir Herzog, e a perícia que atestou ser de uma menina o corpo jogado numa lixeira pela polícia a fim de encobrir o crime praticado contra o menino Juan? 

Qual a diferença entre o relatório do coronel Job Lorena no Caso Riocentro, elaborado para encobrir os crimes dos agentes do Estado e no qual constava que os ‘terroristas oficiais’ tinham sido vítimas de militantes de esquerda, e o relatório do delegado que tentou incriminar Amarildo, para encobrir os crimes dos agentes do Estado? 

Qual a diferença entre o governo que promoveu ao generalato o coronel Job Lorena, depois do seu relatório que isentava de responsabilidade os ‘terroristas oficiais’, e o governo que prestigiou o delegado que tentou elaborar relatório incriminando Amarildo, lotando-o na DRCI para investigar manifestantes? 

Qual a diferença da atuação do Ministério Público durante a ditadura, na busca do esclarecimento e da responsabilização dos autores da farsa do relatório do Riocentro, e a atuação do atual Ministério Público, na busca do esclarecimento e da responsabilização dos autores da farsa do relatório que tentou incriminar Amarildo? 

Qual a diferença da dor dos filhos de Rubens Paiva e de outros desaparecidos políticos da ditadura, mortos depois de sessões de tortura nas dependências policiais e militares, e a dor dos filhos de Amarildo e de outros desaparecidos da democracia, mortos depois de sessões de tortura em dependências policiais e militares? 

O que há de distinguir uma ditadura de uma democracia não pode ser o nome lhes atribuído, mas as práticas sociais e institucionais. A democracia não pode resguardar apenas o direito de parcela privilegiada da sociedade, mantendo a exclusão e a violação dos direitos dos pobres, sob pena de se tornar imprestável ao povo, no prejuízo da sua própria manutenção. A redemocratização e os direitos dela decorrentes precisam ser estendidos à periferia. Democracia não é apenas direito de votar, mas, também, de participar da vida cidadã e gozar de bens comuns.


Publicado originariamente no jornal O DIA, em 21/09/2014, pag. E6. Link: http://odia.ig.com.br/noticia/opiniao/2014-09-21/joao-batista-damasceno-semelhancas-e-diferencas.html


domingo, 14 de setembro de 2014

Juízes e livre expressão

“A ONU dedicou especial atenção à questão da independência judicial. No Sétimo Congresso das Nações Unidas, foi destacado que dentre os princípios da independência judicial deve ser garantido pelos Estados que os juízes, assim como os demais cidadãos, gozem de liberdade de expressão, associação, crença e reunião, a fim de preservar a dignidade de suas funções. Após a adoção destes termos foram adotados os Princípios de Bangalore, onde se estabeleceu que os juízes, como qualquer cidadão, têm direito à liberdade de expressão.

“A Comissão Interamericana de Direitos Humanos debruçou-se em dois casos sobre violação da liberdade de expressão dos juízes com decisões recentes que reafirmam tal direito. A Corte Europeia de Direitos Humanos analisou o tema da liberdade de expressão referente a uma juíza russa e reafirmou que ela constitui a essência de uma sociedade democrática, condição básica para o desenvolvimento destes valores.”

Ante assaques sofridos pelo desembargador Siro Darlan, em decorrência de concessão de habeas corpus a manifestantes presos e pelo exercício de manifestação do pensamento, acorreram magistrados e membros da sociedade civil em ato de desagravo a ele. O histórico salão do Primeiro Tribunal do Júri comportou centenas de pessoas na defesa da liberdade de expressão, primeiro princípio da democracia, e da independência judicial. Notas de entidades e mensagens de autoridades comprometidas com o Estado de Direito Democrático foram lidas. Uma delas, escrita em forma de carta ao desagravado, era da cofundadora da Associação Juízes para a Democracia (AJD) e ex-presidenta da Federação Latino-americana de Juízes para a Democracia, Kenarik Boujikian, primava pelo tom coloquial e pela historicidade da questão da independência judicial e liberdade de expressão dos juízes pelo mundo. Nela, a desembargadora paulista teceu considerações sobre vários julgados ao redor do mundo onde a questão foi tratada.

A ONU dedicou especial atenção à questão da independência judicial. No Sétimo Congresso das Nações Unidas, foi destacado que dentre os princípios da independência judicial deve ser garantido pelos Estados que os juízes, assim como os demais cidadãos, gozem de liberdade de expressão, associação, crença e reunião, a fim de preservar a dignidade de suas funções. Após a adoção destes termos foram adotados os Princípios de Bangalore, onde se estabeleceu que os juízes, como qualquer cidadão, têm direito à liberdade de expressão.

A Comissão Interamericana de Direitos Humanos debruçou-se em dois casos sobre violação da liberdade de expressão dos juízes com decisões recentes que reafirmam tal direito. A Corte Europeia de Direitos Humanos analisou o tema da liberdade de expressão referente a uma juíza russa e reafirmou que ela constitui a essência de uma sociedade democrática, condição básica para o desenvolvimento destes valores.

Juízes apenas não podem se expressar sobre causas ainda sujeitas aos seus julgamentos. Isto implicaria juízo antecipado da causa e ensejar impedimento. Mas para a difusão da cultura jurídica democrática devem os juízes se pronunciar sobre questões de interesse da sociedade, a fim de contribuir para a construção de uma sociedade livre, justa, solidária e pluralista, com prevalência dos direitos humanos e sob o fundamento da dignidade humana, o que somente será possível se atuarem no sentido do reforçamento dos valores próprios da cidadania. Para contribuir com o reforçamento de tais valores, antes os juízes precisam se sentir e se comportar no dia a dia como cidadãos e, no âmbito de suas funções, como prestadores de autêntico serviço público, pautados pelos princípios que norteiam a ação do Estado.


 
Publicado originariamente no jornal O DIA, em 14/09/2014, pag. E6. Link: http://odia.ig.com.br/noticia/opiniao/2014-09-13/joao-batista-damasceno-juizes-e-livre-expressao.html


quinta-feira, 11 de setembro de 2014

Nós cá e eles lá


“Se um policial é considerado violento por sua conduta individual, o que dizer da política de segurança militarizada que equipa ‘caveirões’ com alto-falantes por onde se ouve ‘eu sou a morte’ e ‘vim buscar sua alma’ quando entram nas favelas e bairros da periferia? O comportamento criminoso individual é apenas expressão da política de desrespeito aos direitos humanos em forma de política de segurança militarizada.”

 

A expulsão dos quatro policiais militares acusados de estupro em área da UPP do Jacarezinho ocorreu em tempo recorde, diferentemente de outros casos nos quais autoridades públicas — por inércia, omissão ou cumplicidade — permitem as violações aos direitos dos cidadãos.

 

Diz a denúncia oferecida pelo Ministério Público que um dos acusados demonstra “comportamento violento e personalidade distorcida”. Trata-se de fundamento para pedido de prisão preventiva. As vítimas descrevem um deles “como o mais violento e agressivo dos policiais. No momento do abuso sexual, ele teria dito ‘vocês hoje vão ver o capeta’.” É repugnante o crime cometido contra as moradoras. Mas não é o primeiro caso que se relata.

 

Na invasão do Complexo do Alemão se contaram várias queixas de estupro, roubos, invasões de domicílio e torturas. Numa das conversas interceptadas, um policial, em dia de folga, chamava outro para uma incursão pelo Alemão, dizendo tratar-se de um “garimpo”. O que se possibilita fazer nas comunidades ocupadas militarmente dá a dimensão da truculência do estado; não se trata de comportamento individual ou personalidade distorcida. Mas de política implementada pelo governo do estado.

 

Se um policial é considerado violento por sua conduta individual, o que dizer da política de segurança militarizada que equipa ‘caveirões’ com alto-falantes por onde se ouve ‘eu sou a morte’ e ‘vim buscar sua alma’ quando entram nas favelas e bairros da periferia? O comportamento criminoso individual é apenas expressão da política de desrespeito aos direitos humanos em forma de política de segurança militarizada.

 

Tal política somente se mantém porque acontece num lugar definido como ‘lá’, longe da vida da classe dominante, e subordina a vida de pessoas designadas pelo pronome ‘eles’, denotando que não fazem parte do universo de cartão-postal onde vivem aqueles que assim se expressam. Os advérbios ‘lá’ e ‘cá’ e os pronomes ‘nós’ e ‘eles’ designam a diferença entre os que elogiam a política de segurança militarizada e os que sofrem as suas consequências. A política de segurança militarizada tem garantido ganhos aos seus destinatários. A especulação imobiliária é a mais agradecida.

 

É louvável a expulsão dos policiais acusados de estupro no Jacarezinho, mas nem toda violência estatal tem sido tratada com o mesmo rigor. O acobertamento dos autores das torturas, da morte e do desaparecimento do Amarildo é emblemático. Foram as manifestações e a grandeza de um delegado que impediram a prevalência da versão oficial da área de segurança do estado. O mesmo se pode dizer dos assassinos da juíza Patrícia Acioli. Apesar de condenados, até hoje não foram desligados da polícia e continuam a receber seus salários regiamente, decorridos três anos do crime.
 
 
 
Publicado originariamente no jornal O DIA, em 07/09/2014, pag. E6. Link: http://odia.ig.com.br/noticia/opiniao/2014-09-07/joao-batista-damasceno-nos-ca-e-eles-la.html

quarta-feira, 3 de setembro de 2014

Revista íntima viola intimidade


Oligarquias e Judiciário


“A história das instituições brasileiras é permeada pela tentativa de racionalidade e centralização em contraposição à autonomia local e descentralização. A centralização racional no Brasil nos remete aos modelos autoritários, e a descentralização, ao mando local e interesses das elites regionais. Em ambas o que falta é democracia e valores republicanos. Tanto a centralização quanto a descentralização acabam por entregar o poder em mãos autoritárias, uma de âmbito geral e outra de âmbito local.”

 

O Pleno do Tribunal de Justiça do Rio aprovou novo regimento disciplinador de suas relações internas, com possibilidade de reeleição dos que já ocuparam cargos na sua administração, obedecido tão-somente um período de afastamento; e rejeitou a participação dos juízes, todos concursados, na eleição. A edição de regimentos pelos próprios tribunais nos remete à primeira lei republicana que tratava de suas autonomias.

A história das instituições brasileiras é permeada pela tentativa de racionalidade e centralização em contraposição à autonomia local e descentralização. A centralização racional no Brasil nos remete aos modelos autoritários, e a descentralização, ao mando local e interesses das elites regionais. Em ambas o que falta é democracia e valores republicanos. Tanto a centralização quanto a descentralização acabam por entregar o poder em mãos autoritárias, uma de âmbito geral e outra de âmbito local. As centralizações realizadas por Marquês de Pombal em 1759, por D. Pedro I em 1823, por Deodoro e Floriano após 1889, por Getúlio Vargas em 1930 e pelos militares em 1964 foram seguidas por descentralizações que não implicaram democratização. A fórmula centralizadora que garantiu o reinado de D. Pedro II por 49 anos ruiu quando os fazendeiros se apossaram das instituições republicanas após alijamento dos que, num golpe, haviam instituído a República.

Na Europa inexiste separação de poderes, e o Judiciário, embora autônomo em seu funcionamento, não tem autogoverno. Nos EUA o Judiciário é autônomo quanto à capacidade de produzir julgamentos, mas, como poder político, está sujeito a controles, alguns descabidos. No Brasil, o Judiciário é um poder do Estado, autônomo e com autogoverno. De suas decisões jurisdicionais cabem recursos. Mas suas decisões administrativas ficam ao sabor das vontades das elites judiciais. O Conselho Nacional de Justiça (CNJ) foi saudado como ‘governo da magistratura’, capaz de incutir racionalidade a um poder nacional composto por mais de 90 tribunais, todos autônomos. Mas o CNJ, instalado, sem lei que o regulamentasse, se transformou num grande juizado, sem capacidade de editar normas gerais que orientem as relações interinstitucionais, e sua composição tem sido a cada dia mais politizada.

O ‘Pacote de Abril’ do general Geisel e a edição da Lei Orgânica da Magistratura Nacional (Loman) no último dia do seu governo foi uma tentativa de centralização autoritária do Judiciário. A onda atual de edição de regimentos internos nos tribunais, a pretexto de que a Loman é inconstitucional, denota atuação do poder local contra uma lei nacional que deveria ter sido substituída pelo Estatuto da Magistratura resultante de projeto que o STF, desde 1988, não envia ao Congresso. O interesse pela descentralização não o é pela democratização.

 

Publicado originariamente no jornal O DIA, em 31/08/2014, pag. E6. Link: http://odia.ig.com.br/noticia/opiniao/2014-08-30/joao-batista-damasceno-oligarquias-e-judiciario.html