segunda-feira, 25 de maio de 2015

A culpa não é dos desus

“Quando, em 2007, artistas e intelectuais lançaram manifesto contra a política de extermínio que se instalava, o secretário Beltrame, por trás da lente de seus óculos, disse que o manifesto era míope. A miopia era institucional e só enxergava o Ibope que a matança fazia elevar. A partir da promoção da chacina do Alemão naquele ano, iniciaram-se as ocupações militares e instalações de UPPs. Daí desguarneceu-se o resto do Estado, e foram colocadas em risco a vida dos moradores e a de policiais nas comunidades ‘pacificadas’.”
Milan Kundera, em ‘A insustentável leveza do ser’, analisa o mito de Édipo e lhe dá uma interpretação muito valiosa neste momento no qual autoridades fingem-se de vítimas das próprias opções políticas. Os pais de Édipo, Laio e Jocasta, reis de Tebas, quando do seu nascimento, consultaram o oráculo, e este pronunciou que o recém-nascido haveria de matar o pai e se casar com a mãe. O rei mandou que levassem o filho à floresta e que o matassem. Mas o emissário apenas o abandonou por lá. Achado por um camponês, Édipo foi criado como um filho. Na idade adulta, Édipo consultou o oráculo e, horrorizado, fugiu.
Ao tentar entrar em Tebas, um homem tentou impedi-lo, e Édipo o matou, casando-se em seguida com a viúva — a rainha. A desgraça se abateu sobre Tebas. E Édipo, ao descobrir que a maldição decorria do fato de ter matado o pai e ter se casado com a própria mãe, furou os olhos e partiu da cidade.
Kundera diz que Édipo não se desculpou dizendo não saber que a mulher com quem casara era a mãe, não responsabilizou os deuses que lhe reservaram tal destino nem pôs a culpa em terceiros. Assumiu eticamente sua responsabilidade. Para não mais ser enganado pelas aparências, furou os próprios olhos e buscou conhecer a realidade a partir de sua essência.
Quando, em 2007, artistas e intelectuais lançaram manifesto contra a política de extermínio que se instalava, o secretário Beltrame, por trás da lente de seus óculos, disse que o manifesto era míope. A miopia era institucional e só enxergava o Ibope que a matança fazia elevar. A partir da promoção da chacina do Alemão naquele ano, iniciaram-se as ocupações militares e instalações de UPPs. Daí desguarneceu-se o resto do Estado, e foram colocadas em risco a vida dos moradores e a de policiais nas comunidades ‘pacificadas’.
Incapaz de tratar a segurança com seriedade, o Estado responsabiliza os fabricantes de facas pelos ataques com arma branca e tenta imputar responsabilidade ao Judiciário pelas solturas quando das prisões ilegais. O Brasil tem a terceira maior população carcerária do mundo, proporcionalmente à população, e todos os encarcerados o são por determinação judicial. Portanto, quem prende é o Judiciário, que tem contribuído com o ineficaz encarceramento. Se os crimes não tivessem sendo praticados com facas, poderiam estar sendo com tesouras, chaves de fenda ou garrafas. Ou será que a próxima inovação da política de segurança no Rio será a vedação de garrafas de vidro e a obrigatoriedade de envasamento de bebidas, exclusivamente, em garrafas PET? O problema da segurança no Rio está em sua formulação.
 
 
Publicado originariamente no jornal O DIA, pag. E6, em 24/05/2015. Link: http://odia.ig.com.br/noticia/opiniao/2015-05-23/joao-batista-damasceno-a-culpa-nao-e-dos-deuses.html

 

domingo, 17 de maio de 2015

Fachin no Supremo

“No governo FHC as tentativas de desmantelamento do poder e dever de dizer o Direito pelo Judiciário foram obstadas por oposição competente, que — no poder — poderia ter contribuído para a realização substancial e não apenas formal da ordem jurídica. A resistência no Senado à indicação de Fachin é a objeção do Brasil arcaico às formas de implementação da ordem jurídica para a realização da justiça”.
A indicação de Luiz Fachin para o Supremo ensejou polêmica que não se via há muito tempo. O marechal Floriano Peixoto, em guerra com a Marinha e com o STF, teve cinco dos seus indicados rejeitados. O ministro Evandro Lins e Silva, indicado por João Goulart, foi aprovado com a diferença de um voto. Analisando a história das nomeações para o STF, o que se depreende é que juristas com perfil progressista têm maior rejeição no Senado. O STF é o último recurso dentro da legalidade. A ele somente se opõem, com vantagem, as armas nos golpes de Estado mediante a submissão da legalidade ao regime da força, tal como fazem os ladrões quando nos querem tirar a carteira.
Lins e Silva teve contra si parte das empresas de comunicação — assim como Fachin — e, nomeado, continuou sendo difamado por editoriais. Lins e Silva, Hermes Lima e Victor Nunes Leal aplicavam o Direito editado pelo regime militar, sem as concessões próprias das injunções políticas. Eram garantistas e efetivadores do Direito vigente e por isso foram cassados após o AI-5.
Em 1996, o Banco Mundial editou o Documento Técnico 319, recomendando reforma do Judiciário na América Latina e no Caribe a fim de satisfazer ao capital. Lê-se que a recomendação de reforma era da Agência dos EUA para o Desenvolvimento Internacional, responsável pela reforma do ensino no Brasil, após o golpe de 1964, quando do acordo MEC-Usaid. Mas não foi em todos os lugares que a subordinação do Judiciário se fez facilmente, por oposição do trabalhadores. Consta no documento que “na Argentina a Usaid teve dificuldade em implementar reformas, antes da alteração para uma estrutura constituinte” e que “no Chile a cobertura da imprensa foi muito importante para a reforma do Código Penal”.
O Banco Mundial e a Usaid recomendam alternativas para a solução de conflitos. Assim é que na América Latina há esforço para supressão dos direitos, notadamente dos trabalhadores, e resolução de conflitos por arbitragem, conciliação e mediação. Mas o papel do Judiciário é dizer o direito.
No governo FHC as tentativas de desmantelamento do poder e dever de dizer o Direito pelo Judiciário foram obstadas por oposição competente, que — no poder — poderia ter contribuído para a realização substancial e não apenas formal da ordem jurídica. A resistência no Senado à indicação de Fachin é a objeção do Brasil arcaico às formas de implementação da ordem jurídica para a realização da justiça.
 
Publicado originariamente no jornal O DIA, em 17/05/2015, pag. E6. Link: http://odia.ig.com.br/noticia/opiniao/2015-05-17/joao-batista-damasceno-fachin-no-supremo.html

domingo, 10 de maio de 2015

Banhos de maio

“O meio ambiente saudável é direito público subjetivo, do qual todos somos titulares. Melhor seria se, em vez de tentarem nos convencer de suas lucubrações, as autoridades tomassem efetivas decisões para a despoluição, a começar pelos rios e canais que deságuam na Baía de Guanabara”.

O mergulho do secretário estadual do Ambiente, André Corrêa, na Baía de Guanabara, visando a assegurar que suas águas não são tão poluídas como mostrara reportagem, não foi o primeiro. Trata-se de um secretário mergulhão, mas em locais seguros. Desta vez Corrêa banhou-se em hora adequada, na maré cheia, com a água limpa do oceano entrando, em ponto junto à entrada da Baía, onde a corrente é mais forte. Evitou, desta forma, contaminação. Em 23 de dezembro de 2001, quando ocupava o mesmo cargo, no governo Garotinho, caiu no Piscinão de Ramos, acompanhado do então ministro do Trabalho de FHC, Francisco Dornelles, atual vice-governador. Em disputa de braçadas, o secretário se saiu melhor que o então ministro, que também ganhou exposição e aproximação com eleitores da periferia.

A entrada de autoridades em rios, praias e lagos poluídos para demonstrar sua adequação não é novidade nem aqui nem em lugar algum do Terceiro Mundo. Em data recente, autoridade indiana bebeu água do Ganges, um dos rios mais poluídos do mundo, para demonstrar sua adequação para as festividades em homenagem à divindade materna que simboliza.

Mas a escola no Rio é bem anterior. Em maio de 1982, acidente industrial poluiu o Rio Paraibuna, e a onda tóxica invadiu o Paraíba do Sul, destruindo fauna e flora. Toneladas de peixes mortos desceram rio abaixo. A poluição chegou até Campos, dizimando a vida por cerca de 300 quilômetros. O governador de Minas fechou a empresa poluidora, e o governador do Rio, Chagas Freitas, fundador do DIA , enviou mensagem ao então ministro Mário Andreazza informando que pediria indenização pelos prejuízos causados. Decorridos 10 dias, quando a lama venenosa interrompera o abastecimento de água para a população ribeirinha, o Dr. Chagas foi a Campos e banhou-se no Paraíba do Sul, além de beber sua água.
 
O governador era da ala moderada da oposição, dócil à ditadura, em tempo de bipartidarismo. Era aliado de Tancredo Neves, tio de Dornelles, e se opunham — na oposição — à ala autêntica, liderada por Ulysses Guimarães. Não se tem notícia de doença contraída pelo Dr. Chagas, nem de ajuste com a ditadura para sua conduta. Mas, naquele momento, prestou-se a tentar convencer a sociedade de que a poluição que via era apenas miragem.

O meio ambiente saudável é direito público subjetivo, do qual todos somos titulares. Melhor seria se, em vez de tentarem nos convencer de suas lucubrações, as autoridades tomassem efetivas decisões para a despoluição, a começar pelos rios e canais que deságuam na Baía de Guanabara.
 
 
 

 

Publicad/o originariamente no jornal O DIA, em 10/05/2015, pag. E6. Link: http://odia.ig.com.br/noticia/opiniao/2015-05-09/joao-batista-damasceno-banhos-de-maio.html

 

segunda-feira, 4 de maio de 2015

A 'gatificação' do trabalho


“Não haverá garantia de recebimento de direitos rescisórios perante empresas terceirizadas, constituídas tão somente para tal fim e sem patrimônio que garanta os créditos dos trabalhadores. O Brasil arcaico sabe o que é terceirização. O trabalho escravo que subsiste é realizado com a contratação de mão de obra por meio de agenciador, chamado ‘gato’.

A terceirização é ‘gatificação’ das relações de trabalho com a possibilidade de constituição de empresas em nome de ‘laranjas’ a fim de fraudar os interesses dos trabalhadores. A Consolidação das Leis do Trabalho, editada por Getúlio Vargas em 1º de maio de 1943, acaba de completar 72 anos. É o que resta na proteção aos direitos dos trabalhadores. Antes dela, quase todo trabalho no Brasil era precário. O PL 4.430 é a revogação implícita da CLT e da proteção aos trabalhadores”.

 Maria Grahan, esposa de almirante inglês que em 1821 veio auxiliar D. Pedro I no processo brasileiro de independência, escreveu, em seu livro ‘Diário de uma viagem ao Brasil’, que — para trabalhos pesados e perigosos — era mais lucrativo contratar escravo terceirizado que empregar capital próprio na compra de um.

Diante de um acidente fatal, o prejuízo seria pequeno, por vezes limitado ao pagamento do dia de trabalho ao dono. A precarização das relações de trabalho no presente momento, por meio de terceirização, nos remonta àquele período.

O Projeto de Lei 4.430, em trâmite no Congresso, a pretexto de regulamentar o trabalho terceirizado, visa a ampliar tal modalidade de tomada de mão de obra, radicalizando a desproteção aos trabalhadores. A onda neoliberal que varreu o mundo após a queda do Muro de Berlim, em 1989, trouxe com os governos Collor e FHC a expansão da terceirização nos diversos setores da economia e, hoje, quase um terço dos 45 milhões de trabalhadores brasileiros é terceirizado.

A mão de obra, única coisa que os trabalhadores têm para vender a fim de prover sua subsistência e de suas famílias, está sendo entregue às leis do mercado, onde por força da concorrência terá menor preço.

Neste contexto, a terceirização se mostra mecanismo eficiente para rebaixar a remuneração, achatando os demais direitos. Isto implicará aumento da jornada e redução de medidas em prol da saúde e segurança, sujeitando os trabalhadores a doenças e acidentes. A flexibilização implicará aumento da rotatividade no emprego, com maior inadimplência de direitos trabalhistas.

Não haverá garantia de recebimento de direitos rescisórios perante empresas terceirizadas, constituídas tão somente para tal fim e sem patrimônio que garanta os créditos dos trabalhadores. O Brasil arcaico sabe o que é terceirização. O trabalho escravo que subsiste é realizado com a contratação de mão de obra por meio de agenciador, chamado ‘gato’.

A terceirização é ‘gatificação’ das relações de trabalho com a possibilidade de constituição de empresas em nome de ‘laranjas’ a fim de fraudar os interesses dos trabalhadores. A Consolidação das Leis do Trabalho, editada por Getúlio Vargas em 1º de maio de 1943, acaba de completar 72 anos. É o que resta na proteção aos direitos dos trabalhadores. Antes dela, quase todo trabalho no Brasil era precário. O PL 4.430 é a revogação implícita da CLT e da proteção aos trabalhadores.


Publicado originariamente no jornal O DIA, em 03/05/2015, pag. E6. Link: http://www.clipnaweb.com.br/tjrj/consulta/materia.asp?mat=125372&cliente=tjrj&