terça-feira, 29 de setembro de 2015

O aluguel do cargo público

A porta por onde legitimamente se entra ao ofício, é só o merecimento. E todo o que não entra pela porta, (...)  é ladrão, senão ladrão e ladrão: Fur est latro. E por que é duas vezes ladrão? Uma vez porque furta o ofício, e outra vez porque há de furtar com ele. O que entra pela porta poderá vir a ser ladrão, mas os que não entram por ela já o são”. (Sermão do Bom Ladrão (1655), de Padre António Vieira, § VII).
As indicações parlamentares para cargos de direção na estrutura do Estado ou de empresas da administração indireta é tão antiga quanto andar para frente.
Em 1984 o então Secretário de Fazenda do Estado do Rio de Janeiro César Maia, no primeiro governo Brizola, falava que no governo anterior, de Chagas Freitas, os órgãos da Secretaria eram alugados por deputados a prepostos que lhes pagavam para ser nomeados. Aquele César Maia era topetudo, como se pode ver na charge do Ique. Mas, ele foi abduzido e um clone foi deixado em seu lugar.
Conheço parte desta história. Trabalhei por 12 anos e meio na Secretaria de Fazenda e vi muita diretoria e inspetoria ser preenchida por indicação política. Estou no 22º ano na magistratura estadual e minha percepção de tal fenômeno apenas se ampliou. Delegacias de polícia, batalhões de polícia e outros órgãos da estrutura da administração quase sempre sofrem injunções políticas para as nomeações. Pior é quando as indicações são de pessoas alheias ao serviço público de carreira. Mas, as indicações políticas - de pessoas alheias ao serviço público de carreira - para ocupação de cargos de direção não são uma exclusividade do Poder Executivo.




segunda-feira, 28 de setembro de 2015

Que medo é este que da praia nos acalora?

“As recentes perseguições promovidas pela polícia do estado, à margem da Constituição, contra meninos pobres e negros da periferia, é a resposta ao medo que se cultivou em condições para que seja mantido. Não são ocorrências concretas de crimes que deixam a classe média em pânico, mas a estética, a música, a magreza, o comportamento social e a origem dos discriminados. Poucos são os casos concretos de furtos, mas expostos reiteradamente por uma mídia aliada da repressão parecem milhões”.
A Revolta de São Domingos pôs fim à escravidão e proclamou a independência do Haiti, colônia francesa, e o tornou a primeira república governada por originários da África. A Revolução Haitiana, de 1791, se realizou no contexto da Revolução Francesa de 1789. Mas, enquanto a violência da revolução da burguesia na França foi saudada como marco da liberdade, a violência da Haitiana, promovida por escravos em busca da liberdade, foi registrada como massacre bárbaro e deixou receosas as classes dominantes nos países que exploravam mão de obra escravizada.
Nem a Conjuração Mineira de 1789 incluía em seu ideário a abolição da escravatura, e o medo alastrou-se pelo Brasil, intensificando-se com a descoberta de textos em árabe, em 1840, na Bahia. Não havendo quem os traduzisse, imaginou-se tratar-se de uma revolução dos negros islâmicos, e o fato ficou conhecido como Revolta dos Malês. O medo do desejo alheio de liberdade nos animou no século 19 quando o Rio tinha três escravos para cada habitante livre.
A classe dominante cultivou a exclusão e conviveu com o medo do que criava, a ponto da perseguição à Guarda Negra da Princesa Isabel e da criminalização da capoeira no Código Penal da República. Na República, pela primeira vez, tivemos um coronel do Exército comandando a polícia no Rio, a exemplo do delegado federal que hoje chefia a Secretaria de Segurança.
As recentes perseguições promovidas pela polícia do estado, à margem da Constituição, contra meninos pobres e negros da periferia, é a resposta ao medo que se cultivou em condições para que seja mantido. Não são ocorrências concretas de crimes que deixam a classe média em pânico, mas a estética, a música, a magreza, o comportamento social e a origem dos discriminados. Poucos são os casos concretos de furtos, mas expostos reiteradamente por uma mídia aliada da repressão parecem milhões.
Se os governantes, quando vão a Paris para festas com lenços na cabeça, andassem de metrô, ouviriam dos alto-falantes alertas de cuidado com carteiras e celulares. Mas, tal como aqui, deslocam-se em carrões e helicópteros de custeio discutível, desconhecem o mundo no qual vivem, ignoram o Estado de Direito e desafiam até decisões judiciais.
 
 
Publicado originariamente no jornal O DIA, em 27/09/2015, pag. 18. Link: http://www.clipnaweb.com.br/tjrj/Imagens/2015%5C09%5C27%5C0000128055.pdf

 

quarta-feira, 23 de setembro de 2015

O crime de desacato e a desigualdade jurídica

“O direito de examinar e criticar a atuação dos funcionários públicos decorre da democracia, da igualdade de todos perante a lei e da soberania popular. Os direitos são construção da sociedade e os agentes públicos são por ela instituídos. Não é o contrário. Não são os agentes públicos que constroem os direitos para os cidadãos. Já é hora de a sociedade colocar autoridades e seus agentes em seus devidos lugares, a começar pelo desconhecimento de vigência do crime de desacato, que sempre traz consigo um abuso de autoridade”.
Em 1969 foi promulgada a Convenção Americana de Direitos Humanos, ou Pacto de San José da Costa Rica, da qual o Brasil foi signatário desde a primeira hora. Mesmo sob o AI-5 editado em 1968, que mergulhou o país no obscurantismo, o Brasil subscreveu o texto. A assinatura de tratado internacional expressa a intenção de aderir a ele e somente se transforma em lei após sua ratificação. O pacto somente foi ratificado em 1992, passando a ser lei interna, exigível por todo cidadão.
Aquele pacto assegura a liberdade de pensamento e de sua expressão. Durante a ditadura empresarial-militar, Millôr Fernandes dizia que a liberdade de pensamento era apenas para pensar, dada a vigência da censura e consequências legais ou extralegais para quem ousasse se manifestar. O Brasil é o país das contradições. Acostumamos a firmar tratados e editar leis sem os cumprir. Assim foi com a promulgação da lei proibindo o comércio de escravos em 1831, “para inglês ver”. A abolição da escravatura somente se efetivou em 1888. E por isso o Brasil está em vias de ser processado na Corte Interamericana de Direitos Humanos por violação aos tratados subscritos e ratificados.
Em 2004 a Relatoria para a Liberdade de Expressão da Comissão Interamericana de Direitos Humanos da Organização dos Estados Americanos se manifestou sobre a existência de leis que estabelecem proteção aos funcionários públicos não assegurada aos cidadãos, dentre elas a que define o crime de desacato. Tal crime impõe à sociedade uma reverência aos agentes públicos, tal como se ainda vivêssemos numa ‘Sociedade de Corte’, hierarquizada, na qual agentes do Estado gozam de privilegiado modo de tratamento, em desigualdade com os cidadãos.
O direito de examinar e criticar a atuação dos funcionários públicos decorre da democracia, da igualdade de todos perante a lei e da soberania popular. Os direitos são construção da sociedade e os agentes públicos são por ela instituídos. Não é o contrário. Não são os agentes públicos que constroem os direitos para os cidadãos. Já é hora de a sociedade colocar autoridades e seus agentes em seus devidos lugares, a começar pelo desconhecimento de vigência do crime de desacato, que sempre traz consigo um abuso de autoridade.

 

terça-feira, 15 de setembro de 2015

PALESTRA PROFERIDA NO III RURAL JURIS no ICHS/UFRRJ

Antes de me reportar ao que se denomina política de segurança pública na atualidade vou lhes convidar a uma reflexão sobre o conteúdo desta expressão.  Trata-se de expressão sem conceito que a defina. Em Direito temos uma categoria de expressões que chamamos de “conceitos juridicos indeterminados”. E nesta categoria podemos incluir a expressão “segurança pública”. Não se trata de política que expresse o que assegura. Ao contrário, no Estado do Rio de Janeiro, vitrina das políticas para o Brasil, tem se notabilizado por políticas de violaçãos aos direitos. Não se trata, assim de uma política de segurança dos direitos. Ao contrário, da sua supressão.
É uma política que viola o direito de ir e vir a exemplo das blitz que apressionam meninos negros e pobre a fim de impedir que cheguem às praias da Zona Sul da cidade ou quando se promovem conduções para averiguação; é uma política que viola os domicílios, invadidos sem mandado de busca e apreensão; é uma política que viola a dignidade da pessoa humana quando submete presos a tortura para confissões ou para satisfação da perversidade do torturador; é uma política que autoriza o assassinato de pessoas com o acobertamento pelos autos de resistência.
A política de segurança implementada no Estado do Rio de Janeiro, no ano de 2007 foi denominada pelo Estado de “política de confronto”, mas na época editamos um manifesto que a qualificou como “política de extermínio”. Tal “política de exterminío” busca se legitimar na ordem jurídica por meio dos autos de resistênica, cuja análise foi detidamente feita – em sede de doutoramento em Ciência Política – pelo delegado Orlando Zaccone, da qual resultou o livro “Indignos de Vida, a forma jurídica da política de exterminio de inimigos na cidade do Rio de janeiro”.
Os autos de resistência são uma das espécies das violações aos direitos fundamentais que vêm sendo praticados pelo Estado no Rio de Janeiro. Mas, para analisar outras formas de abusos praticados no âmbito da política de segurança do Estado do Rio de Janeiro, vou, também, me reportar a outras espécies de abusos perpetrados por agentes estatais e aos papéis que são desempenhados pelas instituições em nosso Estado que tem servido de escola para outras polícias no Brasil.
Muitos são os abusos que se praticam contra a cidadania. Todos vêm envolvidos em roupagem institucional, verdadeiras farsas, buscando legitimar o ilegitimável e tentar fazê-los parecer com atos legais. Mas, somente a miopia institucional ou a conivência permite tais comportamentos de quem tem o dever de resguardar o Estado de Direito e estabelecer as diretrizes de funcionamento da Administração Pública. Refiro-me ao uso imoderado da violência, e portanto uso de violência ilegítima, às prisões para averiguação, aos latrocínios, e aos autos de resistência no âmbito da atividade policial.
A força é a última razão do Estado. Estado é o ente que no âmbito de um território reinvindica o exercício da violência legítima. Daí é que não se pode conceber Estado sem a força. Mas, não se pode tolerar que a dominação se pretenda justificar pela força. A fonte de legitimação do Estado há de ser a crença na sua eficácia. Não se está aqui falando de uma abstrata política de paz, fundada na boa vontade, pois a força é legítima até em defesa pessoal para repelir mal injusto e grave. O que estamos abordando é o uso imoderado da força como fundamento de uma política de segurança.
Corroborando a atuação do Estado à margem do Estado de Direito, temos também as investigações feitas pelo Ministério Público, o emprego de policiais militares em diligências que caberiam a órgãos do MP, os fundamentos dos pedidos de arquivamento dos autos de resistência e o próprio arquivamento dos autos de resistência pelo Poder Judiciário. Isto, sem tangenciarmos  a questão dos instrumentos de escuta e interceptação de telecomuncações à margem da lei, como aparelho “Guardião”, instalado na Secretaria de Estado de Administração Penitenciária/SEAP, um órgão administrativo sem poder investigatório, mas que maneja equipamento de escuta telefônica.
O modo de atuação da polícia do Estado no tempo presente é expressão do Estado Policial e se contrapõe ao Estado de Direito. Um Estado Policial não se caracteriza, necessariamente, pelo poder da policia. Mas, pelo funcionamento obsessivo e opressivo dos órgãos do Estado, com acentuada e prepotente intervenção na vida cotidiana e simplificação dos procedimentos, em contraposição à complexidade das relações sociais, à dignidade da pessoa humana e a civilidade que possibilita a existência comum. Nas “Jornadas de junho de 2013” tivemos a mais candente expressão do que é o Estado Policial. Naquele momenot, o Estado se comportou como dono do nosso destino e com poderes para transferi-lo a empreiteiros e concessionários de serviços públicos. Não reconheceu a instância pública. Tudo foi tratado como estatal e privatizável. Assustado com a reação da sociedade lançou mão da truculência. Veículos descaracterizados da polícia foram flagrados disparando a esmo em ruas da Zona Sul da cidade; agentes do Estado à paisana foram flagrados promovendo tumultos, identificando-se para grupamentos policiais e no meio deles trocando de roupa para se disfarçarem e tropas policiais foram flagradas encurralando e atacando trabalhadores, crianças e estudantes pelas ruelas do centro da cidade.
O Estado que foi tão eficiente para criminalizar manifestantes das “Jornadas de Junho”, muitos dos quais ainda respondem a processos e outros restaram condenados, não teve a mesma eficiência para apurar os abusos cometidos por seus agentes. Isto porque desempenhavam uma política de Estado, a denominada política de segurança pública, e não se podia dizer tratar-se de desvio de conduta.
Os autos de resistência são práticas dos Estados Policiais que converte os cidadãos em inimigo a ser combatido. Mas, num Estado de Direito se traduzem em ilegalidade do Estado, ainda quando aplaudido pela mídia e, por vezes, autorizado pela opinião pública formada a partir da propaganda oficial e dos interesses da classe dominante.
Também se contrapõe ao Estado de Direito a prisão para averiguação, pois nada mais é que o seqüestro praticado pela polícia. E somente a Lei do Abuso de Autoridade, lei nº 4898 de 09 de dezembro de 1965, editada no início do regime empresarial-militar que sufocou as liberdades por 21 anos neste país, atribui nome diverso de seqüestro a tal conduta. Trata-se de uma ilegal privação de liberdade da pessoa.
Quanto ao estado de liberdade uma pessoa somente pode ostentar dois estados: livre ou preso. A pessoa livre tem o direito de ir e vir e, se lhe convier, permanecer onde estiver. O outro estado, o de prisão, somente se autoriza em caso de flagrante de delito ou ordem escrita de autoridade judiciária competente. Inexiste no Direito Brasileiro terceira possibilidade de cerceamento de direito de ir e vir. Prisão para averiguação, condução para delegacia para fins de avaliação pelo delegado ou outra desculpa que torne a pessoa sujeita à arbitrariedade policial se afigura violação ao direito da pessoa humana. Portanto, fora da prisão em flagrante ou mandado judicial que a autorize, qualquer cerceamento ao direito de ir e vir se traduz em ilegalidade e há de ensejar a responsabilidade do agente. Não convivêssemos pacificamente com as prisões para averiguação o pedreiro Amarildo não teria tido seu direito constitucional de ir e vir violado, não teria sido morto e não teriam desaparecido com seu corpo.
Além da prisão para averiguação e ao lado dos autos de resistência, também temos convivido com a prática policial do latrocínio. Em 2003, a morte em dependência policial do chinês naturalizado brasileiro Chan Kim Chang, que tentava embarcar num avião com alguns dólares não declarados, é emblemática. Daquele episódio resultou a exoneração do Secretário Estadual de Direitos Humanos, João Luiz Duboc Pinaud, que denunciara a ilegalidade do Estado. Em contraposição reforçaram-se os poderes dos grupos truculentos que ampliaram o poder ilegal do Estado. Para suceder o Secretário João Luiz Duboc Pinaud na Secretaria de Direitos Humanos foi nomeado um coronel da Polícia Militar do Rio de Janeiro. É emblemático que um jusfilósofo tenha sido sucedido na Secretaria de Direitos Humanos do Estado por um coronel da polícia. Há precedente na história do Brasil quando Floriano Peixoto, dunrante sua ditadura, inviabilizou o funcionameno do STF e nomeou um oficial do Exército para chefiar a polícia, quebrando a hegemonia dos bacharéis em Direito e magistrados em tal função.
Latrocínio voltou a ser praticado por policiais contra a comerciante chinesa Ye Goue em 2008. Ela saíra de uma casa de câmbio no Shopping Downtown onde trocara R$ 220 mil por US$ 130 mil. O taxi que a conduzia fora parado por policiais que disseram a levaria para a delegacia para fins de averiguação. Seu corpo jamais apareceu. Em tais situações, o que o Estado faz é desqualificar a vítima e atribuir qualidades positivas aos violadores do ordenamento jurídico. Diante do latrocínio e ocultação do cadáver da chinesa Ye Goue, o jornal O DIA de 08 de agosto de 2008 publicou o seguinte: “Delegado da DHBF, Ruchester Marreiros disse que não há provas concretas contra os policiais. ‘Não há imagens dos rostos deles. Abrimos sindicância e nos surpreende porque eles são da equipe de cumprimento de mandados de prisão, trabalham bem e têm condecorações’, afirmou".
Em meios às manifestações de 2013 o chefe institucional do Ministério Público/MP, do Estado do Rio de Janeiro, saiu do seu gabinete e foi à rua conversar com manifestantes, com uso do megafone de um deles, num sinal de compreensão de que somente a vontade popular legitima as instituições num regime democrático. O Procurador Geral de Justiça/PGJ prometera requisitar investigação diante da truculência policial praticada por ocasião das manifestações. E mais, dar transparência a todos os seus atos. Mas, não temos ciência das apurações realizadas. Ao contrário, a criação da Comissão Especial de Investigação dos Atos de Vandalismo/CEIV, composta também pelo MP, foi a resposta aos manifestantes. Aquele era o momento no qual o MP poderia ter implementado seu poder constitucional de controle da atividade policial. Mas, além do MP compunha a CEIV o delegado Ruchester Marreiros, conhecido desde o caso da comerciante chinesa Ye Goue e notabilizado no relatório -não referendado pelo delegado titular da 15ª DP - no Caso Amarildo.
O MP tem poderes expressos para instaurar e presidir o inquérito civil público, promover a ação civil pública, requisitar a instauração de inquérito policial e diligências investigatórias, promover a ação penal pública e exercer o controle da atividade policial. A Constituição não lhe outorga poderes expressos para investigação criminal. E se não lhe conferiu, não pode promovê-la legalmente. Não havemos de demandar do MP investigação direta das atrocidades cometidas pelo Estado, sob pena de demandarmos que atue à margem dos seus poderes. Mas pode requisitar informações e a instauração de inquéritos, bem como acompanhar as diligências policiais.
Disse o Ministro Luiz Roberto Barroso que “viver em Estado de Direito significa fazer tudo o que eu posso, e não tudo o que eu quero”. O combate à criminalidade ou a busca do fim da impunidade não podem ser feitos com os agentes do Estado atuando à margem da lei, sob pena da perda da superioridade ética que legitima a atuação do Estado. Uma política de segurança implantada nestas bases está fadada ao fracasso, pois começa violando direitos e garantias e acaba por ilegitimar todo o ordenamento juridico.
Abordadas estas ilegalidades praticadas pelo Estado tratarei especificamente dos autos de resistência. Este, em muitas vezes, encobre o homicídio com a apresentação do cadáver. Pior que esta conduta somente o homicídio com o desaparecimento do corpo como o do pedreiro Amarildo, da engenheira Patrícia, da chinesa Ye Goue e de tantos outros. Em todas as situações o que se fez foi buscar desqualificar as vítimas a fim de justificar a truculência estatal. No caso da engenheira Patrícia a polícia chegou a fazer incursões na Rocinha sob o fundamento de que ela teria ido até lá comprar drogas e teria sido morta por traficantes. No caso da chinesa Ye Goue discutiu-se a origem do dinheiro que transportava e elogiou-se a ficha funcional dos policiais. No caso de Amarildo tentou-se dizer que era vinculado ao tráfico e que sua casa é rota de fuga, ainda que fisicamente isto fosse impossível.
O auto de resistência é o irmão siamês da ocultação de cadáver; do desaparecimento com os corpos das vítimas. Neste desaparece o corpo. Naquele a dignidade da pessoa é vilipendiada a fim de justificar o homicídio. Vivemos momento de contraposição do Estado à sociedade civil. Esta é a tônica da atual política de segurança pública do Estado do Rio de Janeiro. A desqualificação da vítima é a tônica deste Estado Policial. A fim de legitimar os autos de resistência o que se faz é juntar folha de antecedentes, registros de ocorrências ou depoimentos forjados a fim de justificar a vileza e o arbítrio mórbido.
Estamos diante de uma forma autoritária de relacionamento do Estado com a sociedade, onde pela desqualificação da vítima se busca justificar a eliminação daquele que é tratado como inimigo do Estado. O vendedor de mercadoria que em outras épocas não era ilegal é tratado como indigno de viver. Se não é vendedor do que se proíbe alega-se que é, a fim de promover a desqualificação que justifique a morte ou o desaparecimento. Não se submete a julgamento por conduta concreta; por fato praticado. Elimina-se pela qualidade que se diz negativa: traficante. Em geral, negros, pobres e jovens.
Tenha a qualidade que tiver, uma vítima será sempre uma vítima. Não há de ser tratada como suspeita. A vida é o valor maior. E nenhum dos seus atributos há de ser justificativa para sua eliminação. O levantamento de antecedentes da vítima é forma odiosa de legitimar os crimes do Estado, mas que largamente se pratica para legitimar os autos de resistências. Não há mecanismo legal que possa impedir o delegado de fazê-lo, ainda que seja desejável a vedação de investigação sobre antecedentes da vítima. Mas, o Ministério Público pode requisitar informações do delegado das razões ensejadoras da juntada de antecedentes do morto, quando dispensáveis à apuração do fato. Se apenas o fato, ocorrência concreta no mundo natural, há de ser apurado, qual a razão da juntada de informações desqualificadoras da vítima? Este abuso das autoridades policiais haveria de ser controlado pelo MP, como forma de demonstrar sua rejeição á politica de exterminio.
Em São Paulo autoridade dirigente do Estado declarou, em tempos passados durante uma chacina, que algumas vítimas tiveram seus antecedentes consultados momentos antes de suas mortes, o que evidencia o tipo de Estado que estamos construindo no Brasil. Mas, se inexiste mecanismo legal que impeça a juntada de folha de antecedentes da vítima em inquérito que deveria apuarar sua morte, porque a lei que rege o inquérito policial o autoriza, podemos, além da atuação do Ministério Público no controle da atividade policial, pensar e tentar instituir novo modelo de investigação criminal. Mas, é certo que de nada adiantaria ampliar os poderes do MP, propiciando-lhe promovesse investigações criminais, sujeitando tão nobre instituição ao resvalamento para as práticas hoje vivenciadas, hoje, em sede policial.
Se a atuação dos agentes do Estado com uso imoderado de violência, prisões para averiguação, latrocínios, homicídios, desparecimentos e lavratura de autos de resistência nos ocupam, havemos de nos ocupar também com os pedidos de arquivamento dos autos de resistência pelo Ministério Público e sua efetivação pelo Poder Judiciário.
A qualidade da vítima não pode ser fundamento justificador do arquivamento. Se o MP alega que é legítima defesa não há muito a fazer, diante da privatividade da competência para promover a ação penal pública. E esta é outra questão que havemos de pensar, problematizar e buscar uma solução que contemple a dignidade da pessoa humana.
Na Assembléia Nacional Constituinte de 1988 atuaram – legitimamente - corporações e setores organizados da sociedade. Um deles, o que talvez mais tenha saído fortalecido foi o Ministério Público. Mas, não sei se a atribuição de competência privativa ao MP para promover a ação penal pública foi a mais acertada para a cidadania. O caso dos acordos políticos que ensejou a impunidade das atrocidades praticadas durante o regime empresarial-militar é emblemático. O acordo fora celebrado em patamar distinto do que se situavam as vítimas e seus familiares. Portanto, aqueles que não fizeram parte do pacto que anistiou o Estado e seus agentes pelas atrocidades, não estão a ele vinculados. Da mesma forma, no caso da política de segurança do Estado do Rio de Janeiro.
As decisões estatais sobre as violações aos direitos humanos, que isentam agentes do Estado de responsabilidade, sejam emanadas do legislativo com seu poder de anistia, sejam emanadas do MP ou do judiciário, não vinculam as vítimas de tais violações ou seus familiares, a quem há de ser reconhecido o direito à verdade e à justiça. Se não forem reconhecidas nas instituições públicas brasileiras, caberá às cortes internacionais fazê-lo.
Hoje, diante do pedido de arquivamento dos autos de resistência, formulado pelo MP, com fundamento em desqualificação da vítima, pouco se pode fazer no âmbito judiciário. Há o entendimento de que sequer cabe ao juiz – se discordar do pedido de arquivamento - remeter ao Procurador Geral de Justiça para avaliação da pertinência da propositura da ação com fundamento no art. 28 do CPP, pois não teria sido recepcionado pela Constituição. Assim, nem mesmo os familiares da vítima poderiam propor a ação competente para responsabilizar os assassinos.
Não queremos viver numa sociedade punitiva. Mas, a vida é valor fundamental; o maior deles. E, portanto, diante da violação ao direito de viver, havemos de reagir, sem que com isto sejamos tratados como punitivos ou truculentos. Vivemos num sistema que gera letalidade. O Estado mata. O Estado tem matado com suas armas de fogo; paradoxalmente tem matado com armas não letais e por fim tem matado de tuberculose no sistema prisional. Nestes casos, o Estado encarcera, subtrai a liberdade, expõe ao risco do contágio e ao final não propicia e ainda impede o tratamento. O Estado tem matado de diversas formas.
Vivemos num sistema de altíssima letalidade. Neste sentido podemos dizer que os órgãos de segurança do Estado são de altíssima periculosidade social. Queremos a vida e a queremos em abundância. Queremos a paz. Mas, não a paz dos cemitérios. Não a paz pregada pela Companhia de Jesus que impunha “Perinde ac cadaver”, locução latina que traduzida literalmente significa “obedecer como um cadáver”. Este modo de conceber o outro pelas instituições é que permitiu a edição, por D. João VI, da Carta Régia ao governador de Minas Gerais Pedro Maria Xavier de Ataíde Melo, em 13 de maio de 1808, nos seguintes termos:
tendo-se verificado... a inutilidade de todos os meios humanos, pelos quais tenho mandado que se tente a sua civilização e o reduzi-los a aldear-se e gozarem das justas e humanas leis que regem os meus povos; e até havendo demonstrado quão pouco útil era o sistema de guerra defensivo... sou servido por justos motivos que ora fazem suspender os efeitos de humanidade que com eles tinha mandado praticar (e) ordenar-vos: que desde o momento que receberdes esta minha Carta Régia, deveis considerar como principiado contra estes índios antropófagos uma guerra ofensiva... que não terá fim senão quando tiverdes a felicidade de vos senhorear de suas habitações e de os capacitar da superioridade das minhas reais armas de maneira tal que movidos do justo terror pelas mesmas, peçam a paz, sujeitando-se ao doce juizo das Leis e prometendo viver em sociedade, possam vir a ser vassalos úteis”.
A paz que havemos de querer não há de ser a de vassalos úteis. Não há de ser a paz das cidades prestes a serem invadidas. Não há de ser a paz das comunidades militarmente ocupadas, onde o exercício do direito de ir e vir ou de manifestar pensamento é risco de morte. Isto não é paz. É silêncio por admoestação; é quietude por intimidação.
A truculência do Estado e seus agentes, sem possibilidade de defesa, não propicia uma cultura de segurança cidadã; uma segurança dos direitos. A paz não pode ser construída com a guerra, com a ocupação militar, com invasão de domicílios para revistas ou com os esculachos.
Cadáveres, corpos ocultados ou desaparecidos não são indicativos da construção da paz, como pretendeu a gratificação faroeste, plantada pela militarização e cujos frutos estamos colhendo.
É fácil responsabilizar praças pelas más escolhas dos governantes. Mas, o soldado que mata é brutalizado para não compreender que o mal que há de combater não é o negro, pobre e favelado que lhe mandam enquadrar. Queremos uma polícia melhor. Mas, somente teremos uma polícia melhor se o Estado abdicar da violência ilegítima.
A polícia não deixará de ser violenta se o Estado continuar a ser violento. A polícia mata, porque foi brutalizada para fazê-lo. Foi brutalizada para não compreender o mal que faz. Policiais cantam o refrão do seu hino evocando a luta contra o mal e que ser policial é, sobretudo, uma razão de ser. É, enfrentar a morte e mostrar-se um forte. Se a polícia é brutalizada para não compreender o que faz, os demais atores do sistema de justiça não podem se brutalizar e perder a compreensão. Assim, governantes, parlamentares, membros do Ministério Público e do Poder Judiciário hão de ter a compreensão do que fazem e impedir que a brutalidade continue a ser semeada. Igualmente os jornalistas. Não podemos nos brutalizar. Havemos de ser o diferencial. Não podemos legitimar a matança e a ocultação dos cadáveres por meio da desqualificação da vítima. As empresas de comunicação ajudam a formar a opinião pública. Os donos das empresas de comunicação têm interesses que, por vezes, se contrapõem aos interesses da sociedade. Mas, os profissionais qualificados da mídia podem contribuir com uma nova cultura. Precisam ter valores e pautar suas condutas profissionais na valorização da vida e da dignidade da pessoa humana. Não basta que tenham compromisso com a notícia, notadamente quando ela se limita à divulgação da versão oficial, sem necessária apuração. Para a divulgação das versões oficiais existem as assessorias de imprensa.
Nós que atuamos no sistema de justiça havemos de pautar nossas condutas funcionais pela estrita legalidade, exercendo os poderes que nos foram conferidos pela ordem jurídica em proveito da sociedade. A atribuição de cada cargo por nós titularizado somente nos é dada pela lei e pela lei é delimitada. A atuação à margem da lei se traduz em ilegalidade. E, à margem da lei, todos seremos marginais.
Para concluir, vou parafrasear Bertold Brecht:
Primeiramente, durante a ditadura empresarial-militar eles torturaram, mataram, roubaram, estupraram e desapareceram com aqueles que eles chamavam de subversivos. E muitos não disseram nada. Afinal, não eram subversivos.
Em seguida eles instituíram a gratificação faroeste que premiava com dinheiro e reconhecia bravura naqueles que matassem traficantes ou assaltantes. E muitos não se importaram. Afinal, não eram traficantes ou assaltantes.
Depois eles passaram a colocar portões em vias públicas no subúrbio e periferia, instituir o que chamavam de “condomínios de rua” e cobrar compulsoriamente cotas de manutenção e segurança. O Tribunal de Justiça do Estado do Rio de Janeiro editou a súmula 79 autorizando a cobrança da taxa, a pretexto de que – de outro modo, estar-se-ia diante de enriquecimento sem causa. A repercussão geral de tal questão foi decidida pelo STF. E não dissemos nada.
Depois mataram uma juíza para admoestar a sociedade e mostrar que já tudo podiam. Os oficiais da PM condenados, até hoje, não foram excluídos da corporação. E não dizemos nada.
Ainda podemos nos manifestar. Mas, logo começarão a querer nos intimidar ou nos asfixiar para não mais falarmos. E por não termos dito nada antes, já não poderemos dizer mais nada. Falemos, enquanto temos voz!

ICHS, Campus da UFRRJ, Seropédica, 14/09/2015.
 

segunda-feira, 14 de setembro de 2015

Europa e Estados Unidos: petróleo e pilhagem

A tomada de Constantinopla pelos turcos otomanos, em 1453, pôs fim ao Império Romano do Oriente, marcou o fim da Idade Média e impulsionou europeus na busca por novas rotas visando às riquezas das Índias (Ásia). Assim, Bartolomeu Dias cruzou o Cabo da Boa Esperança em 1488, Pedro Álvares Cabral costeou as terras do Brasil em 1500, e Fernão de Magalhães atravessou o estreito que leva seu nome em 1520. As riquezas cobiçadas da Ásia estimularam os navegadores e deram início à pilhagem mundial. A globalização se iniciou com as Grandes Navegações. Os holandeses que colonizaram a África do Sul, depois da presença portuguesa, representavam os mesmos interesses dos que ocuparam o Nordeste brasileiro durante a União Ibérica e que, expulsos, foram para as Antilhas e para Nova York. Não eram nacionalidades que promoviam as conquistas e ocupações. Era o capital que, tal como gafanhoto, não tem morada nem pátria e destrói tudo por onde passa.
Sem riqueza que pudesse despertar cobiça, o Oriente Médio subsistiu sem sustos até o século 19, quando o petróleo foi descoberto e passou a ter valor como fonte energética. Não demorou para que as potências estimulassem guerras a fim de se apossar das riquezas de lá. Em meio aos massacres dos cristãos, a Igreja patrocinou a vinda de imigrantes sírios para o Brasil, que chegavam com passaporte turco e assim eram chamados, enquanto mascateavam ou montavam suas lojinhas.
Em meio à disputa pela partilha do Império Otomano, um jovem sérvio matou, em 1914, o herdeiro do Império Austro-Húngaro, começando a 1ª Guerra Mundial. Após o conflito, a região foi submetida ao domínio inglês; depois da 2ª Guerra Mundial, à hegemonia estadunidense. Mas comprar petróleo gasta dinheiro, e os países do primeiro mundo preferem o petróleo roubado, que é mais barato. Por isso desestabilizam a região, enfraquecem o poder estabelecido, armam mercenários para derrubar governos e se apossam do petróleo. Pouco lhes importa o custo em vidas humanas. A desumanização no Oriente Médio não começa por lá, mas de onde é fomentada, notadamente dos Estados Unidos e da Europa. O pré-sal está sujeito à mesma cobiça, mas os mercenários daqui são armados com empresas de comunicação e instituições jurídicas a seus serviços.
 

terça-feira, 8 de setembro de 2015

'Vocês deveriam ter vergonha'

No dia 28, no Seminário Internacional do Instituto Brasileiro de Ciências Criminais, um acontecimento ficou mal explicado envolvendo o neurocientista estadunidense Carl Hart e o Hotel Tivoli Mofarrej, na região dos Jardins, zona nobre de São Paulo. A mídia divulgou que o professor da Universidade de Colúmbia, um negro com dreadlocks, fora barrado onde iria proferir uma palestra. O caldo entornou de vez quando Carl começou sua fala e pediu aos presentes que olhassem para o lado e vissem quantos negros havia onde se falava de direitos e cidadania. Em seguida, disparou contra a audiência: “Vocês deveriam ter vergonha!”
A notícia se espalhou pela internet como rastro de pólvora. Ao tomar ciência do que se difundia pela rede, o próprio Carl disse que não sofrera constrangimento. Um dos organizadores do evento, vendo o segurança andando em direção ao convidado, cuidou de interceptá-lo para esclarecer que aquele era um ‘negro especial’ e que era bem-vindo.
Ao começar a palestra, o neurocientista estadunidense colocou o dedo na ferida e conclamou os participantes do congresso a refletir sobre o discurso que se faz em favor dos excluídos, mantendo-os no mesmo patamar. No mesmo fim de semana no qual a quase interpelação de um neurocientista negro no saguão de um hotel de luxo causou comoção, a polícia do Rio, com a complacência do governador, impediu que jovens ‘negros comuns’ e pobres da periferia pudessem chegar às praias da Zona Sul. A atrocidade, somente comparável ao apartheid que vigeu na África do Sul, teve apoio de parcela da sociedade desejosa, sem vergonha, de manter a exclusão. A culpa recaiu exclusivamente sobre a polícia, que tem parcela de responsabilidade. Não se trata de gente sem consciência de que ordem ilegal não se cumpre. Mas a responsabilidade há de recair sobre toda a cadeia de comando, inclusive o governador.
Tal como sugerido por Carl Hart, precisamos — pelo menos — ter vergonha por vivermos confortavelmente em meio à exclusão e às custas dos excluídos, até que estes assumam o protagonismo de suas demandas e em anos eleitorais passem a expulsar para a Zona Sul aqueles que os impedem de sair da periferia para ir às praias, que são bem de uso comum do povo.
 
Publicado originariamente no jornal O DIA, em 06/09/2015, pag. 18. Link: http://odia.ig.com.br/noticia/opiniao/2015-09-05/joao-batista-damasceno-voces-deveriam-ter-vergonha.html