terça-feira, 28 de março de 2017

Esquizofrenia ou cinismo


A análise dos discursos oficiais provoca inquietação em decorrência da diversidade existente entre o discurso e a ação. Dentre os fenômenos que podem explicar tal dicotomia está a esquizofrenia, que é doença, ou o cinismo, anomalia no caráter.
Esquizofrenia designa transtorno psíquico caracterizado pela dissociação entre ação e pensamento. Podem ser delírios ou alucinações. Delírios são crenças no que não é verdadeiro, baseadas em um julgamento incorreto sobre a realidade.
A condenação de Rafael Braga e a visualização de potencialidade de dano em sua conduta de morador de rua somente se justificam pelo delírio que acomete a classe dominante no Brasil que teme o povo. As alucinações são falsas percepções da realidade.
A Súmula 70 do Tribunal de Justiça, dispondo sobre a suficiência da alegação policial para efeito de condenação criminal à qual se reconhece presunção de veracidade, decorre de falsa percepção do que ocorre na periferia.
O cinismo implica descaso pelos valores sociais, tais como a invocação da origem divina dos julgamentos e desconsideração de que o poder é legitimado pelo povo, que os agentes públicos somente podem fazer o que e a lei manda e que a democracia mais que a razão da maioria e alternância de poder implica respeito às minorias.
Em tempo no qual o Judiciário se coloca a reboque da polícia, legitimando arbitrariedades, e quando juízes garantistas dos direitos dos acusados são perseguidos, surge no seio da instituição discurso de que o Judiciário precisa se humanizar.
A humanização não pode ser mero discurso daqueles que vilipendiam a dignidade da pessoa humana. Há de significar a efetiva realização dos valores com os quais está comprometida uma ordem que tenha por primado os direitos da pessoa humana.
De nada adianta falar que o Judiciário precisa se abrir para a sociedade quando tais interações dos juízes ficam sujeitas a controle disciplinar, salvo se em resorts e custeadas pelo capital. De nada adianta falar que o juiz deve ser participativo e que a Justiça não pode ser mera espectadora se cerceia-se o encontro com a sociedade no seio da magistratura e extinguem-se foros de debates onde estes encontros eram possíveis. Não se trata de distância entre intenção e gesto. Mas de discurso e prática. Talvez o problema não seja doença.
 

Publicado originariamente no jornal O DIA, em 25/03/2016, pag. 9. Link: http://odia.ig.com.br/opiniao/2017-03-25/joao-batista-damasceno-esquizofrenia-ou-cinismo.html

quinta-feira, 16 de março de 2017

Sérgio Verani: “Burocratismo autoritário” aniquila Escola da Magistratura do Rio


 

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Sérgio Verani (à esquerda): Muita força ao retrocesso imposto pelo desembargador Ricardo Cardozo (à direita)

Retrocesso na Emerj

por Sérgio Verani

Ao assumir a Direção Geral da Escola da Magistratura RJ (biênio 2017/2018), o Desembargador Ricardo Rodrigues Cardozo editou os Atos Regimentais números 1 e 2, para redefinição dos Fóruns Permanentes.

Nos seus “considerandos” destaca “a política de eficiência e renovação implementada pela nova Administração da Escola”, “a moderna prática de descentralização administrativa, mas sob controle da direção geral” e “a necessidade da reestruturação dos Fóruns Permanentes, buscando uma maior especificidade dirigida às necessidades da magistratura fluminense”.

Esclarece que os Fóruns Permanentes “buscam as atualizações e os novos conhecimentos do saber jurídico, consoantes a evolução da conjuntura político-jurídica do país, especialmente, acerca do Poder Judiciário e suas interações”, e um dos seus objetivos é “incentivar o debate crítico de molde a desenvolver a reflexão sobre novos temas jurídicos”.

Em nome dessa “política de eficiência e renovação” e incentivo ao “debate crítico”, a nova Administração extingue vários Fóruns Permanentes: 1) Direito, Cinema e Literatura; 2) Direito e Psicanálise; 3) História do Direito; 4) Sociologia Jurídica; 5) Direito e Saúde; 6) Execução Penal.

Esses Fóruns eram presididos, respectivamente, por: Juíza Andrea Pachá, Des. Ricardo Couto, Des. Milton Fernandes de Souza, Juiz João Batista Damasceno, Juíza Isabel Coelho e Des. Alvaro Mayrink.

O Fórum de Direito Penal/Processo Penal não foi extinto, mas afastado o seu Presidente, Des. Paulo Baldez, e todos os seus membros.

O Fórum de Direitos Humanos, que tive a honra de presidir desde a sua criação, em 2008, na gestão do Des. Paulo Ventura, também não foi extinto, mas desfigurado.

Foram dele afastados, além de mim, todos os seus membros: Juiz Rubens Casara – que o presidiu no biênio 2013/2014, quando fui eleito para a Direção Geral – Juiz Alexandre Correa Leite, Professor Miguel Baldez (Procurador do Estado aposentado, assessor de movimentos populares, Professor Emérito da Emerj) e Maria de Lourdes Lopes (militante dos Direitos Humanos, coordenação do Movimento Nacional de Luta pela Moradia – MNLM).

Como compreender a questão dos Direitos Humanos sem a escuta e a participação dos movimentos populares?

Na Portaria Número 8/2008, de 24.6.08, que instala o Fórum Permanente de Direitos Humanos, o Des. Paulo Ventura ressalta que é “indispensável a participação dos movimentos sociais organizados na formação coletiva deste Fórum”, para “instaurar um espaço de aprendizagem crítica, histórica e ética sobre o Poder Judiciário e a prática judicial, com referência permanente na luta pelos Direitos Humanos.”

Era, em 2008, a comemoração dos 20 anos da Constituição Federal e dos 60 anos da Declaração Universal dos Direitos Humanos.

A diversidade do saber e a pluralidade do pensamento – presentes em todas as gestões – estão, agora, banidas da Emerj.

Instala-se, ali, um retrocesso jurídico, cultural, histórico, social, humano. O pensamento do burocratismo autoritário constitui a referência da nova Administração.

Como compreender a “evolução da conjuntura político-jurídica do país” desprezando saberes fundamentais que possibilitam a reflexão crítica?

O Juiz que ignora as múltiplas fontes de conhecimento, como as produzidas pela Literatura, pelo Cinema, pela Sociologia, pela História, pela Psicanálise, pela Filosofia, pela Criminologia, pelo reconhecimento da universalidade do direito à Saúde, pelas Lutas Populares, não passará, esse Juiz, de mero positivista burocratizado, na sua função e na sua vida. Jamais deixará de ser um Juiz Ivan Ilitch, como o personagem de Tolstoi.

A todos que integram os diversos Fóruns Permanentes e demais órgãos da Emerj, desejo muita força para resistir ao retrocesso.

Sérgio Verani

Desembargador aposentado do TJRJ

Ex-diretor geral da EMERJ

 


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A nova adminstração da Escola da Magistratura do RJ excluiu do seu quadro de professores todos os que têm uma visão humanista, não dogmática do Direito. Nesta foto, há três: o desembargador Paulo Baldez e os juízes Rubens Casara e João Batista Damasceno. Da esquerda para a direita: juiz Rosidélio Lopes Fontes  (ex-presidente da (AMAERJ), Casara, desembargador Nagib Slaib Filho, desembargador Nildson Araújo da Cruz, Baldez, desembargador Sérgio Verani (ex-diretor geral da EMERJ), Fonseca Costa (ex-diretor geral da EMERJ), desembargador Siro Darlan e  Damasceno.

 

 

Publicado originariamente no blog VI O MUNDO em 15/03/2017 às 22h20m. Link:  http://www.viomundo.com.br/denuncias/sergio-verani-burocratismo-autoritario-aniquila-escola-da-magistratura-do-rio.html

 

 

segunda-feira, 13 de março de 2017

Capricho e liberdade pública


O jurista e cientista político alemão Karl Loewenstein analisou os horrores praticados pelo nazismo sob as leis que ele mesmo fazia. Muitos executores de barbaridades foram posteriormente absolvidos alegando legalidade e obediência hierárquica. Mas os formuladores das leis iníquas não puderam isto alegar.
 
Seus estudos tiveram grande impacto no pensamento constitucional do Ocidente. Em sua obra ‘Teoria da Constituição’, Karl Loewenstein afirmou que as constituições são aquilo que fazem com ela na prática
 
Dispõe a Constituição que são funções institucionais do Ministério Público “promover o inquérito civil e a ação civil pública, para a proteção do patrimônio público e social, do meio ambiente e de outros interesses difusos e coletivos” e “requisitar diligências investigatórias e a instauração de inquérito policial”.
 
A Constituição é clara. O MP pode promover o inquérito civil público. Quanto a inquérito policial e diligências investigatórias, apenas pode requisitar a atuação policial. Mas o MP tem promovido inquérito policial, e há decisões judiciais legitimando isto. Apesar do texto, a Constituição é o que se faz na prática com ela.
 
O perigo de tais atuações à margem da legalidade é a perda da referência até onde pode ir o agente público. Um promotor endereçou cartas a empresários perguntando sobre a atuação de um juiz considerado garantista dos direitos dos acusados.
 
A resposta foi que estavam insatisfeitos e que se deveria ser mais duro com os indesejáveis. Estas respostas foram remetidas ao tribunal, pedindo procedimento contra o juiz como se fossem manifestações espontâneas dos empresários.
 
As “colaborações premiadas” são práticas regulamentadas por lei e sujeitas a prévia homologação judicial. Mas membros do MP têm ouvido presos ‘informalmente’ e atribuído a tais ‘depoimentos’ o rótulo de “colaboração espontânea” com o fim de incriminar pessoas contra as quais desejam ver instaurado procedimento.
 
Em Magé, no ano de 1996, um promotor deixou de ser falsamente acusado de tentativa de crime sexual porque outro promotor que sabia da trama “bateu com a língua nos dentes” e o promotor que seria acusado foi avisado por um juiz. É perigoso um sistema no qual as liberdades ficam sujeitas aos caprichos de autoridades. Só a legalidade é parâmetro para as liberdades públicas.
 

Publicado originariamente no jornal O DIA, em 11/02/2017, pag. 11. Link: http://odia.ig.com.br/opiniao/2017-03-11/joao-batista-damasceno-capricho-e-liberdade-publica.html